A imagem que ficou
Pedro
J. Bondaczuk
A imagem com que
seremos lembrados pela posteridade – caso o sejamos, claro, pois a imensa
maioria cai no esquecimento eterno e jamais o é por quem quer que seja – foge
por completo à nossa vontade e ao nosso controle. E raríssimas vezes é
consensual ou minimamente justa. Uns só vêem nossos defeitos, os erros que
cometemos, as contradições em que incorremos e se vierem a nos mencionar algum
dia, por escrito, será como exemplo do que não se deve fazer. Outros, por
motivos que só eles podem explicar, apenas enxergam o que fizemos de positivo,
principalmente nossa obra literária, se formos escritores e se ela se coadunar
com seus gostos e idéias. Outros mais, estes bastante raros, tentam ser
equilibrados e “misturam” coisas boas e ruins a nosso respeito. Essas versões são as que considero, pelo
menos, mais verossímeis.
Por isso, quando
pesquiso a biografia de qualquer personalidade, busco consultar várias fontes
(caso elas existam), para extrair uma espécie de “média”. E, ainda assim, tenho
a convicção que o perfil que emergir dessa variedade de menções jamais será o
verdadeiro daquela pessoa. Pode até ser o mais próximo do real, contudo será
apenas isso. É o caso, por exemplo, do escritor e jornalista espanhol Mariano
José de Larra y Sanches de Castro. Para seus admiradores, foi um intelectual
talentoso, que criou um estilo literário peculiar, principalmente na avaliação
dos costumes, da vida social e da política do seu tempo e do seu país, que foi
a temática que explorou em sua obra. Para seus detratores (na verdade,
inimigos), que foram muitos, todavia. ele não passou de um farsante, de um
sujeito amoral e “chato” à cata de defeitos alheios para ridicularizá-los.
Neste último caso, se fosse utilizada a linguagem informal, a da gíria atual,
para caracterizá-lo, os que não gostavam dele (seja qual for o motivo),
poderiam rotulá-lo de “mala sem alça”.
A principal razão de
Larra ser alvo de tantas inimizades era seu aguçado (na verdade ácido e
contundente) senso crítico. Notadamente como jornalista. Nessa condição,
dirigiu, escreveu e editou, entre outras coisas, um folhetim mensal de ensaios
satíricos, intitulado “O Duende Satírico do Dia”, em que desancava tudo e
todos, sem dó e nem piedade, utilizando como instrumento esse poderoso e
implacável recurso (quando usado com perícia) que é a ironia. Tinha, na época,
somente dezenove anos de idade. O veículo uma espécie de revista de ensaios
rústica, inédita até então na Espanha, mas que na Inglaterra era popularíssima.
Suas críticas, mordazes
e duras – escritas sob vários pseudônimos, como “Figaro”, “Duende”, “Bachiller”
e “El pobrecito hablador”, entre outros – eram voltadas, reitero, a tudo e a
todos. Satirizava desde os costumes da época aos principais homens públicos
espanhóis, como escritores, atores, atrizes, pintores, músicos, políticos,
empresários, clero e vai por aí afora. Em qualquer sociedade, é praticamente
impossível encontrar alguém que não tenha lá seus “pecadilhos”. Mas não foi,
apenas, essa publicação de que ele se valeu para ridicularizar os costumes
sociais espanhóis e seus principais personagens. Publicou, no espaço de somente
dois anos, mais de duas centenas de artigos satíricos, todos ácidos, duros,
contundentes, implacáveis e ferinos. Não se admira, pois, que tivesse tantos
inimigos.
O curioso é que a
imagem negativa que deixou entre os adversários não se referia propriamente ao
seu talento literário, que deveria ser o que os incomodasse. Até seus mais
inconciliáveis inimigos admitiam, embora a contragosto, que ele escrevia bem.
Tanto que hoje Mariano de Larra é reconhecido como um dos mais importantes
expoentes do romantismo literário espanhol. Os ataques dos que o detestavam
eram voltados à sua pessoa, quer no aspecto físico, o da sua aparência
(provavelmente por inveja), quer no que se refere ao seu comportamento, nada
usual numa Espanha conservadora.
Enquanto seus
admiradores, por exemplo, o retratam como bem apessoado (vá lá, bonito, segundo
eles, ou mais propriamente, elas), elegante e charmoso, capaz de conquistar
qualquer mulher, seus detratores o descrevem como um sujeito “de bochechas
carnudas, boca frouxa, olhos grandes e ovalados; rosto mole e algo bovino,
arrematado por um topete, no qual cada cacho era fixado com precisão”. Há
várias gravuras de Larra que mostram
esse perfil disforme e feio. Claro que não passam de caricaturas.
Afinal, na época, a fotografia não havia sequer sido inventada. É essa a imagem
que ficou dele para a posteridade. Seus admiradores (sobretudo, admiradoras),
contestam que ele fosse assim tão tosco. Mas nem uns e nem outros têm como
provar qual era sua verdadeira aparência.
Quanto a comportamento,
tudo indica que este não era lá nada exemplar. Larra era um mulherengo
incorrigível, o que levou, entre outras coisas, seu casamento com Josefa
Wetoret Velasco – com quem teve três filhos – ao fracasso. Pudera. Ela não
tolerou as sucessivas traições do marido e mandou-o andar. Ou seja, separou-se
dele e não queria vê-lo mais “nem pintado de ouro”. Ah, as mulheres... E foi um
“rabo de saia” o responsável pela morte do contumaz conquistador. Explico.
Larra manteve um caso
com uma mulher casada, sem que o marido desta soubesse (ou pelo menos
presume-se que não sabia), cheio de idas
e vindas, de separações e reconciliações. Na última tentativa de tê-la em
definitivo ao seu lado, todavia, nosso Dom Juan
fracassou. Sua amante recusou-se a prolongar um caso condenado pela
sociedade e sem nenhum futuro de prosperar. Optou por ficar com o marido, que
provavelmente não amava (caso contrário não o trairia daquela forma). E disse
tudo isso a Larra, sem tirar e nem por.
Mal ela saiu de sua
casa, após derradeira e decisiva conversa a propósito, que tornou o rompimento
definitivo, o escritor não suportou a rejeição, a que não estava acostumado. Em
um momento de desespero causado pela vaidade ferida, cometeu suicídio, com um
tiro de pistola na têmpora direita. Isso ocorreu em 13 de fevereiro de 1837.
Faltavam apenas um mês e onze dias para o incorrigível Don Juan completar 28
anos de idade (ele nasceu em Madri, em 24 de março de 1809). Justa ou injusta,
é esta a imagem dele que prevalece até hoje, embora eu entenda que deveria
prevalecer a do excelente escritor que foi, que chegou a ser considerado
“menino-prodígio” da Literatura espanhola, o que pode ser comprovado pela
excelente obra literária que nos legou. Mas...
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