Brasil
tem 4 Somálias
Pedro J. Bondaczuk
O poeta paraibano Augusto dos Anjos, que foi
professor do tradicional Colégio Dom Pedro II do Rio de Janeiro, e médico,
escreveu, num magistral soneto, constante de quase todas as boas antologias de
literatura brasileira: "O homem, que nesta terra miserável/vive entre
feras, sente inevitável/necessidade de também ser fera".
Esta sensação o brasileiro tem hoje diante do
dantesco quadro de miserabilidade do País. Quem tem sensibilidade, sente raiva,
e mais do que isso, asco, de quem permitiu ou contribuiu para tamanha
deterioração social, através da incompetência administrativa, corrupção ativa e
passiva, e tantos outros crimes que sempre permaneceram impunes.
O presidente em exercício, Itamar Franco, recomendou
aos segmentos que têm poder de decisão no Brasil a leitura da matéria "O
Brasil de muitas Somálias", publicada pelo jornal "O Globo" em
sua edição de domingo. O trabalho, embora muito bem escrito, revela apenas a
ponta de um "iceberg", de descaso, desumanidade e cinismo num país
tido e havido, atualmente, como a sociedade mais injusta do mundo, aquela que
possui a maior concentração de renda de todo o Planeta.
A referida reportagem, entre outras coisas, fala dos
"badameiros" de Salvador, que é como são chamados os catadores de
lixo na capital baiana. São 400 seres humanos, no mais baixo grau de
indigência, que sobrevivem com os restos jogados fora pela população da cidade.
Tais "garimpeiros", frise-se, existem em
inúmeras outras zonas urbanas pelo Brasil afora. Inclusive em Campinas, embora
muitos prefiram simplesmente ignorá-los. Salvador conta com o lixão Canabrava,
um dos maiores aterros a céu aberto do País, com 34 hectares de monturo. Para
os badameiros, porém, esta é a fonte da sua infeliz, absurda e desesperançada
sobrevivência. Há quem esteja até pior.
A citada matéria de "O Globo" destaca, em
determinado trecho: "Entre os pobres, 3,5 milhões de famílias (34 milhões
de pessoas) são indigentes, ou seja, não têm recursos para comer, mesmo que
usem toda a sua renda somente com alimentação. 'Isso significa dizer que, em
1990, de cada dez brasileiros, 4,4 eram pobres e 2,3 indigentes', diz o
documento do Ipea" (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).
A comunidade internacional presencia, estarrecida, a
situação atual da Somália, onde as Nações Unidas patrocinam uma operação de
guerra para impedir a morte, pela fome, de 2 milhões de seres humanos. No
entanto, somente os 34 milhões de indigentes compõem um contingente 4,2 vezes
maior do que a totalidade dos habitantes desse país africano (estimada em 7,5
milhões). Com uma agravante. O território somali, à exceção de uma área no sul,
cruzada pelos rios Juba e Shebeli que vêm da Etiópia, é todo ele árido ou
semi-árido.
Existe ali um dos piores desertos do Planeta, o de
Ogaden. O Brasil, no entanto, é todo ele fértil. Possui a maior área
agriculturável do mundo. E no entanto, 34 milhões de brasileiros apenas
conseguem comer quando alguém sente compaixão deles e lhes dá alguma coisa.
Seria mesmo demagógica, ou populismo do presidente
em exercício, Itamar Franco, , quando mostra preocupação em fazer algo por
essas 4,2 Somálias encravadas no coração do País?
(Artigo publicado na página 2, Opinião, do Correio
Popular, em 16 de dezembro de 1992)
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk.
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