Tuesday, April 22, 2014

Criação de personagens

Pedro J. Bondaczuk

A criação de personagens é uma das tarefas que mais me fascinam na atividade literária. Claro que me refiro, especificamente, à Literatura de ficção – conto, novela, romance e peça teatral – em que a presença dessas figuras imaginárias (mas não necessariamente) são imprescindíveis para darem vida aos enredos que temos em mente e viabilizarem, dessa forma, a obra que escrevermos. Os métodos de criação variam, de acordo com a personalidade de cada escritor. Mas há algo comum nesse processo criativo. Refiro-me ao parâmetro adotado, consciente ou inconscientemente. Esse modelo, quer para os heróis, quer para os vilões, somos sempre nós mesmos, salvo uma ou outra exceção. O que varia é a quantidade de características nossas  “projetadas” nos personagens que criarmos.

Alguns escritores  não planejam com antecedência os protagonistas das histórias que se propõem a narrar. Criam-nos ao longo da narrativa, como que ao acaso, à medida que o enredo exija. Não sei até que ponto esse procedimento funciona. Nunca tentei agir assim. Da minha parte, prefiro criar os personagens antes mesmo de iniciar a narrativa propriamente dita. É questão de personalidade. É o que meus críticos chamam (jocosamente, sem dúvida) de obsessão, de mania, de tara por organização. Os adjetivos variam, mas o teor das críticas é sempre o mesmo. Tenho, de fato, essa característica. Gosto de ordem e procuro ser organizado tanto nas coisas, quanto, e principalmente, nas idéias. Todavia, não incorro nos exageros que meus adversários (seriam inimigos?) me atribuem. Enfim...

Esse processo de criação de personagens enseja-me a oportunidade de observar, com atenção redobrada, as pessoas com as quais convivo, buscando nelas as características adequadas para os protagonistas das minhas histórias, de acordo com os papeis que irão representar no enredo. E essa observação estende-se, também, a quem não integra meu círculo de convivência. Observo, por exemplo, personagens criados por outros (de filmes, de novelas de TV, dos noticiários dos meios de comunicação etc.etc.etc.), tirando deles, quando julgar oportuno, uma coisa aqui, outra ali, para a composição dos protagonistas dos meus enredos.

Dessa forma, busco compor os “heróis”, os tais “mocinhos” como são conhecidos popularmente, com aspectos e comportamentos positivos, que despertem as simpatias do supremo árbitro da obra que estou criando: o leitor. Mas busco agir com a máxima cautela nesse momento, para não criar uma figura perfeita demais, dessas que sei que não existem neste mundo de violências e contradições, ou seja, rigorosamente exemplar, sem falhas e nem máculas, em pensamentos e em ações. Não existe e suponho que nunca existiu ninguém assim. Um personagem que raie a “santidade” certamente iria destoar. Não seria verossímil. Meus protagonistas têm que ser do tipo que encontramos em qualquer lugar e momento.

Afinal, todos somos, simultaneamente, feixes de virtudes e de defeitos, variando, apenas, na intensidade. Somos misto de bondade e maldade, de altruísmo e egoísmo, de cordura e violência, etc,etc,etc., características estas que se manifestam, ou deixam de se manifestar, ao sabor das circunstâncias. O mesmíssimo cuidado tem que ser observado na criação do vilão, ou dos vilões da história. Neste caso, procuro evitar (na medida do possível) de seguir o exemplo do mestre Machado de Assis, tendo em mente um personagem específico de determinado conto (do qual não me recordo o título) que o Bruxo do Cosme Velho criou. Não que se trate de escritor que não se deva “tentar” imitar. Não é isso. É, porém, daqueles que, por mais que tentemos, jamais “conseguiremos” sequer nos aproximar de sua genialidade. Qualquer tentativa nesse sentido, portanto, tende a nos levar ao ridículo.

Explico. O personagem de Machado, suprassumo da maldade, mas que é inimitável, é aquele sujeito que ele criou, que posava para o mundo como um homem piedoso e bom, quase um santo, que se condoia do sofrimento alheio e se empenhava em assistir e confortar os sofredores. Visitava diariamente hospitais e ficava horas ao lado dos pacientes que passavam pelos piores sofrimentos. Sua atitude causava profunda admiração no corpo médico, nos enfermeiros e em todas as pessoas que testemunhavam seu procedimento, por seu aparente “profundo espírito de solidariedade”. Mas Machado de Assis era gênio e detestava obviedades. Uma de suas características marcantes era a capacidade de surpreender os leitores. E neste conto específico surpreendeu de maneira magistral, mostrando como,via de regra, as aparências enganam. .

O tal personagem que aparentemente se condoia do sofrimento alheio e que, de alguma forma, “parecia” buscar prestar solidariedade ao sofredor, foi pilhado, em sua casa, torturando um rato. Decepava, lenta e meticulosamente, cada parte do corpo do animalzinho, tomando cuidado para retardar sua morte e assim ampliar sua dor. E essa figura sinistra finda por queimar o bichinho, após a amputação de várias partes do seu corpo, nas chamas se não me falha a memória de um bico de Bunsen, com extrema lentidão. entrando em êxtase face à agonia de sua indefesa vítima. Em suma, esse personagem não era bondoso coisa nenhuma. Era rematado e enlouquecido sádico, que sentia o máximo prazer com o sofrimento de outros seres vivos, entre os quais, claro, os humanos. Daí a freqüência com que visitava os hospitais.

Meus vilões, apresso-me em esclarecer, não chegam nem perto da capacidade de dissimulação e da maldade latente desse personagem de Machado de Assis. O escritor precisa ser um gênio, como o Bruxo do Cosme Velho foi, para tornar uma figura tão abjeta, asquerosa e terrível e, sobretudo, tão inverossímil, totalmente verossímil aos olhos do leitor. Não recomendo a nenhum dos meus colegas que sequer tentem criar protagonista remotamente parecido com este. Não vai “colar”. Será, certamente, enxovalhado, malhado e ridicularizado pela crítica. Voltarei, oportunamente, a esse fascinante tema, o da criação de personagens, que sequer cheguei a esboçar.


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