Criação de personagens
Pedro
J. Bondaczuk
A criação de
personagens é uma das tarefas que mais me fascinam na atividade literária.
Claro que me refiro, especificamente, à Literatura de ficção – conto, novela,
romance e peça teatral – em que a presença dessas figuras imaginárias (mas não
necessariamente) são imprescindíveis para darem vida aos enredos que temos em
mente e viabilizarem, dessa forma, a obra que escrevermos. Os métodos de
criação variam, de acordo com a personalidade de cada escritor. Mas há algo
comum nesse processo criativo. Refiro-me ao parâmetro adotado, consciente ou
inconscientemente. Esse modelo, quer para os heróis, quer para os vilões, somos
sempre nós mesmos, salvo uma ou outra exceção. O que varia é a quantidade de
características nossas “projetadas” nos
personagens que criarmos.
Alguns escritores não planejam com antecedência os
protagonistas das histórias que se propõem a narrar. Criam-nos ao longo da
narrativa, como que ao acaso, à medida que o enredo exija. Não sei até que
ponto esse procedimento funciona. Nunca tentei agir assim. Da minha parte,
prefiro criar os personagens antes mesmo de iniciar a narrativa propriamente
dita. É questão de personalidade. É o que meus críticos chamam (jocosamente,
sem dúvida) de obsessão, de mania, de tara por organização. Os adjetivos variam,
mas o teor das críticas é sempre o mesmo. Tenho, de fato, essa característica.
Gosto de ordem e procuro ser organizado tanto nas coisas, quanto, e
principalmente, nas idéias. Todavia, não incorro nos exageros que meus
adversários (seriam inimigos?) me atribuem. Enfim...
Esse processo de
criação de personagens enseja-me a oportunidade de observar, com atenção
redobrada, as pessoas com as quais convivo, buscando nelas as características
adequadas para os protagonistas das minhas histórias, de acordo com os papeis
que irão representar no enredo. E essa observação estende-se, também, a quem
não integra meu círculo de convivência. Observo, por exemplo, personagens
criados por outros (de filmes, de novelas de TV, dos noticiários dos meios de
comunicação etc.etc.etc.), tirando deles, quando julgar oportuno, uma coisa
aqui, outra ali, para a composição dos protagonistas dos meus enredos.
Dessa forma, busco
compor os “heróis”, os tais “mocinhos” como são conhecidos popularmente, com
aspectos e comportamentos positivos, que despertem as simpatias do supremo
árbitro da obra que estou criando: o leitor. Mas busco agir com a máxima
cautela nesse momento, para não criar uma figura perfeita demais, dessas que
sei que não existem neste mundo de violências e contradições, ou seja,
rigorosamente exemplar, sem falhas e nem máculas, em pensamentos e em ações.
Não existe e suponho que nunca existiu ninguém assim. Um personagem que raie a
“santidade” certamente iria destoar. Não seria verossímil. Meus protagonistas
têm que ser do tipo que encontramos em qualquer lugar e momento.
Afinal, todos somos,
simultaneamente, feixes de virtudes e de defeitos, variando, apenas, na
intensidade. Somos misto de bondade e maldade, de altruísmo e egoísmo, de
cordura e violência, etc,etc,etc., características estas que se manifestam, ou
deixam de se manifestar, ao sabor das circunstâncias. O mesmíssimo cuidado tem
que ser observado na criação do vilão, ou dos vilões da história. Neste caso,
procuro evitar (na medida do possível) de seguir o exemplo do mestre Machado de
Assis, tendo em mente um personagem específico de determinado conto (do qual
não me recordo o título) que o Bruxo do Cosme Velho criou. Não que se trate de
escritor que não se deva “tentar” imitar. Não é isso. É, porém, daqueles que,
por mais que tentemos, jamais “conseguiremos” sequer nos aproximar de sua
genialidade. Qualquer tentativa nesse sentido, portanto, tende a nos levar ao
ridículo.
Explico. O personagem
de Machado, suprassumo da maldade, mas que é inimitável, é aquele sujeito que
ele criou, que posava para o mundo como um homem piedoso e bom, quase um santo,
que se condoia do sofrimento alheio e se empenhava em assistir e confortar os
sofredores. Visitava diariamente hospitais e ficava horas ao lado dos pacientes
que passavam pelos piores sofrimentos. Sua atitude causava profunda admiração
no corpo médico, nos enfermeiros e em todas as pessoas que testemunhavam seu
procedimento, por seu aparente “profundo espírito de solidariedade”. Mas
Machado de Assis era gênio e detestava obviedades. Uma de suas características
marcantes era a capacidade de surpreender os leitores. E neste conto específico
surpreendeu de maneira magistral, mostrando como,via de regra, as aparências
enganam. .
O tal personagem que
aparentemente se condoia do sofrimento alheio e que, de alguma forma, “parecia”
buscar prestar solidariedade ao sofredor, foi pilhado, em sua casa, torturando
um rato. Decepava, lenta e meticulosamente, cada parte do corpo do animalzinho,
tomando cuidado para retardar sua morte e assim ampliar sua dor. E essa figura
sinistra finda por queimar o bichinho, após a amputação de várias partes do seu
corpo, nas chamas se não me falha a memória de um bico de Bunsen, com extrema
lentidão. entrando em êxtase face à agonia de sua indefesa vítima. Em suma,
esse personagem não era bondoso coisa nenhuma. Era rematado e enlouquecido
sádico, que sentia o máximo prazer com o sofrimento de outros seres vivos,
entre os quais, claro, os humanos. Daí a freqüência com que visitava os
hospitais.
Meus vilões, apresso-me
em esclarecer, não chegam nem perto da capacidade de dissimulação e da maldade
latente desse personagem de Machado de Assis. O escritor precisa ser um gênio,
como o Bruxo do Cosme Velho foi, para tornar uma figura tão abjeta, asquerosa e
terrível e, sobretudo, tão inverossímil, totalmente verossímil aos olhos do
leitor. Não recomendo a nenhum dos meus colegas que sequer tentem criar
protagonista remotamente parecido com este. Não vai “colar”. Será, certamente,
enxovalhado, malhado e ridicularizado pela crítica. Voltarei, oportunamente, a
esse fascinante tema, o da criação de personagens, que sequer cheguei a
esboçar.
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