Destruído pela pressa
Pedro
J. Bondaczuk
O lisboeta Mário de Sá
Carneiro foi um sujeito impaciente e apressado. Pelo menos é essa a impressão
que tenho dele ao ler alguns detalhes sobre a sua vida. A “pressa” a que me
refiro, é bom esclarecer, não é aquela trivial, a que temos, por exemplo, quando
estamos atrasados para algum compromisso inadiável e queremos recuperar esse
atraso para chegarmos em tempo, sem corrermos nenhum risco de perdê-lo ou
retardá-lo. Não é a isso a que me refiro
Sua pressa era a de obter o sucesso literário que achava estar ao seu
alcance. E creio que estava mesmo.
Mário de Sá Carneiro
nasceu, em 19 de maio de 1890, em uma Lisboa em que fervilhavam idéias novas e
havia grande vontade da população de recuperar o atraso de Portugal em relação
a outros centros mais evoluídos da Europa e conduzi-lo, assim, à modernidade,
ou ao que se entendia, então, como tal. E não somente nas artes, mas também na
política, na economia e no comportamento social. Sua “pressa” manifestou-se
desde cedo, porquanto ainda um quase menino, aos 12 anos de idade, ele compôs
seus primeiros poemas, para orgulho dos pais e espanto dos adultos, que não
acreditavam que alguém tão novo pudesse transmitir tanto sentimento e emoção,
como aquele “pírralho” pré-adolescente transmitia.
O garoto era o que hoje
chamaríamos de “nerd”, ou seja, aquele sujeito estudioso e aplicado, que abre
mão dos prazeres da vida acessíveis nesse período de desenvolvimento em favor
de um aprendizado não raro precoce e prematuro, posto que mais profundo. Era o
que atualmente, se freqüentasse nossas escolas do século XXI, denominaríamos
jocosamente de “cdf” (óbvio que não definirei o que essas iniciais significam,
pois tenho certeza que o leitor conhece esse significado de sobejo), como se
isso fosse algum defeito e não virtude a ser imitada. Querem uma prova dessa
precocidade e dessa aplicação? Basta dizer que, aos quinze anos de idade, Mário
já lia Victor Hugo no original e, não somente isso, mas traduzia os textos
desse ícone das letras da França. O que isso significava? No mínimo, que ele
dominava a língua francesa. Dois anos depois, aos 17, tornou-se expert no
complicadíssimo idioma alemão, traduzindo obras de Johann Wolfgang Goethe e
Friedrich Schiller. Como se vê, o menino prodígio tinha “pressa”, muita pressa.
Mas foi em Coimbra,
mais especificamente, na tradicionalíssima e tão requisitada na época Faculdade
de Direito daquela cidade, célebre por sua universidade, que seu talento
desabrochou de vez. Ali, entre outras coisas, conheceu pessoas brilhantes. A
principal foi o genial Fernando Pessoa. Esses artistas e “projetos de artistas”
o influenciaram para o bem e para o mal. Era o ano de 1912. Mário estava,
então, com vinte e dois anos de idade. A influência benéfica que recebeu dessas
novas amizades foi a introdução em um mundo de novidades, em termos artísticos,
sobretudo no modernismo, que então escandalizava os tradicionalistas
portugueses, mas encantava a juventude contestadora. Mas o jovem lisboeta foi,
também, influenciado em sentido negativo pelos amigos que fez. Passou a levar
vida boêmia e dissoluta, para a qual não estava psicologicamente preparado,
negligenciando os estudos, em nome de uma pseudo “vivência artística”, como se
todo artista tivesse que ser, necessariamente, bêbado e dissoluto para ser
talentoso. Óbvio que não tinha e não tem.
O jovem escritor
mudou-se para Paris, onde não só manteve-se na boemia, mas chegou aos extremos
de bebedeiras e dissolução. Inclusive passou fome na “Cidade Luz”, já que não
tinha recursos financeiros para bancar tudo aquilo, para serem jogados fora em
álcool e mulheres. Todavia, Mário de Sá Carneiro tinha pressa, muita pressa de
produzir sua obra, a despeito da vida irregular e dissoluta que levava. Queria
se consolidar o mais rápido possível no mundo literário. Nesse aspecto, até que
teve êxito, embora esse pudesse ter sido muito maior caso encarasse a vida com
responsabilidade. Tanto isso é verdade que, mesmo naquele ambiente sem regras e
nem ordem,, ele produziu a maior parte da sua obra poética e em apenas quatro
anos: entre 1912 e 1916.
Curiosamente, embora
seja conhecido, hoje em dia, nos círculos literários, notadamente como poeta,
publicou apenas dois livros de poesias, sendo um deles póstumo: “Dispersão”
(1913) e “Indícios de ouro” (1917). Escreveu, além de uma peça teatral, coletâneas
de novelas e vários contos. Confesso que não conheço sua obra em prosa, a
ficcional. Mas tenho em meu poder seus livros de poesias, que li, reli e torno
a ler, amiúde, citando seus magníficos versos em inúmeros textos que escrevo,
sempre que isso se faz oportuno.
Mário de Sá Carneiro
ombreia-se aos maiores poetas de Portugal do modernismo, embora tenha, ao longo
de sua curta (mas profícua) carreira freqüentado correntes tais como o
decadentismo, o simbolismo e o saudosismo. Por influência de Fernando Pessoa,
freqüentou outros “ismos”, como o interseccionismo, o paulismo e o futurismo.
Fez parte da famosa “Geração d’Orpheu”, que revolucionou as artes de Portugal e
que merece um capítulo à parte, tamanha sua importância para a cultura
lusitana. Mas Mário tinha pressa, muita pressa. E esta levou-o, primeiro, a um
estado de tédio, depois, de angústia e, por fim, de desespero, já que tinha
estrutura psicológica instável, frágil, dada a sucessivas e profundas
depressões e à cotidiana (ou quase) melancolia. Isso levou-o à destruição. Ou,
para ser mais exato, à autodestruição.
No dia 26 de abril de
1916, vinte e três dias antes de completar vinte e seis anos de idade, Mário de
Sá Carneiro deu cabo da própria vida. Matou-se em seu quarto do Hotel Nice, no
bairro parisiense de Montmartre, ingerindo cinco frascos de arseniato de
estricnina. O curioso é que convidou o amigo José de Araujo para testemunhar
sua agonia. Há quem diga que, caso não desse cabo da vida, superaria, até com
facilidade, seu amigo, mentor e guru Fernando Pessoa em importância na
Literatura de língua portuguesa. Mas... como saber? É impossível prever com
ínfima probabilidade de acerto como seria alguma coisa que jamais aconteceu. Só
se pode especular a respeito. Por isso, insisto, foi a pressa (a tal que é
inimiga da perfeição) que destruiu Mário de Sá Carneiro. Vivesse pelo menos até
os 50 anos e conservasse seu talento, abandonando a vida boêmia e aplicando-se
exclusivamente às letras, quanta coisa esse escritor não poderia ter produzido?
Ou não, quem sabe...
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