A versão que fica
Pedro
J. Bondaczuk
O filósofo Platão, por
tudo o que li dele (da obra que produziu), ou a seu respeito (o que escreveram
sobre ele), me parece ter sido figura excepcionalíssima, no melhor sentido, à
qual cabe, a caráter, a cada vez mais rara designação de “gênio”. Entre outras
tantas coisas excepcionais, quase inacreditáveis, que lhe dizem respeito, uma
das que me causam maior assombro é o fato de ser o único pensador de um passado
tão remoto cuja obra preservou-se quase intacta até os dias atuais. Sobreviveu,
portanto, a catástrofes, guerras, saques e a outras tantas circunstâncias
responsáveis pela perda de irrecuperáveis acervos artísticos, filosóficos e
culturais dos nossos remotíssimos antepassados. Além de registrar idéias
próprias, revolucionárias ainda hoje (imaginem no seu tempo), é tido como
“porta-voz” do seu ilustre mestre, Sócrates, que não legou à posteridade uma
única linha escrita de próprio punho. Tudo o que se conhece a seu respeito e
sobre suas ideias se deve à generosidade e à meticulosidade desse seu devotado
discípulo, Platão.
Até aí, tudo bem.
Admito a importância desse gênio da “mãe de todas as ciências”, que é a
filosofia. Todavia, sem querer ser nihilista, destes de carteirinha, que tudo
questionam, contestam e põem em dúvida, fico indagando a meus botões: o quanto
do que se conhece sobre esse gênio é verdadeiro e o quanto não passa de um
conjunto de lendas, mitos e versões: ou seja, de ficção? O que há de exatidão
em sua biografia? E no que ele escreveu, o quanto, de fato, reflete o que ele
realmente pensava? Não houve deturpações? Não é possível, até, que suas idéias
tenham sido muito mais profundas e geniais do que o conjunto de textos que lhe
é atribuído e que chegou até nós, homens do século XXI? A mesma possibilidade
existe, claro, no sentido inverso.
E no que me baseio para
cultivar tantas dúvidas? Em uma série de fatores, dos quais mencionarei,
apenas, os mais plausíveis. Até meados do século XV da era Cristã, antes da
invenção dos tipos móveis, por parte do alemão Johannes Guttenberg, a produção
de livros era um processo rigorosamente artesanal. Eram produzidos por
“encomenda”. O autor entregava os originais a copistas, que os reproduziam, e
na quantidade exata dos que encomendavam as referidas obras. Claro que os
profissionais encarregados dessas cópias eram peritos em sua arte. Afinal,
viviam disso. Mas eram seres humanos e não máquinas. Eram, portanto, sujeitos a
doenças, a gripes e a inadiáveis necessidades fisiológicas que os levavam a
interromper a tarefa várias vezes ao dia, para retomá-la a seguir. Encaravam,
enfim, todo tipo de circunstâncias tendentes a comprometer (ou até mesmo a
suprimir) sua concentração, mesmo que momentaneamente.
Não consigo crer, por
outro lado, que houvesse algum copista, um único que fosse, totalmente a salvo
de erros. Ou seja, que conseguisse copiar calhamaços volumosos sem cometer um
único errinho de grafia, ou sem trocar nenhuma palavra, ou sem omitir não só
uma, mas dezenas delas e assim por diante. Afirmo, sem medo de errar, que não
havia. Os copistas erravam, sim, e bastante. Ademais, não faziam apenas “uma
cópia”, mas, dependendo das encomendas, estas ascendiam a dezenas, quando não a
centenas. Ora, pensar que nesse volume todo de trabalho a margem de erro fosse
zero é a tolice das tolices. É ser crédulo demais e isso eu não sou. E nem
estou considerando o mau entendimento dos originais, em decorrência, digamos,
da péssima caligrafia do autor.
Pois bem, essas cópias,
não raro, iam parar em outros países, de línguas diferentes da de quem redigiu
o livro. Precisavam, portanto, ser traduzidas. E, no processo de tradução, mais
distorções em relação ao original ocorriam?. É óbvio que sim. Além disso, a
versão traduzida, para se tornar um livro, tinha que ser copiada. E na
quantidade em que era encomendada. Supondo que os potenciais leitores que
encomendassem a obra fossem cinqüenta, por exemplo, era esse o número de cópias
que teria que ser feito. Portanto, o mesmo risco que o livro original corria,
de sofrer “transformações” indesejadas,
de um volume para outro, as traduções corriam. E, para piorar, acrescido dos
possíveis equívocos do tradutor. Ademais, as traduções não eram feitas
diretamente dos originais do autor. Não raro, o eram de cópias de cópias de
cópias de cópias, cada qual com seu conjunto de lapsos e de alterações.
Ainda assim, não deixam
de ser admiráveis as idéias de Platão (e esse sequer era seu verdadeiro nome,
mas um apelido que pode ser interpretado como “pseudônimo”, com o qual se
tornou conhecido para a posteridade). Com todas as deturpações que possam ter
sofrido (e que, pelos motivos expostos e por tantos outros que não expus,
certamente sofreram), o “conteúdo” chegou até nós razoavelmente intacto. E não
há dúvidas que é genial, levando-se em conta a época em que o filósofo escreveu
seus livros. Já o nome verdadeiro de Platão, para os que desconhecem esse
detalhe, era Aristocles. Recebeu o apelido, com o qual ficou conhecido através
dos séculos, por causa dos seus “ombros largos”, que é o que o pseudônimo
adotado significa. O genial discípulo de Sócrates era um homem robusto, de
porte atlético, forte e saudável, tanto que viveu até os oitenta anos, numa
época em que uma pessoa de 40 já era considerada “velha”.
Aliás, sua morte – caso
não se trate de lenda, nunca se sabe – foi tão inusitada como tudo o mais a seu
respeito que chegou até nós, homens do século XXI. Ocorreu em uma festa, sem
aviso e sem alarde. Enquanto a festança rolava solta, Platão afastou-se dos
convidados para um canto isolado da casa e... dormiu. Ninguém estranhou e nem
se incomodou com isso. Só foram perceber que seu sono era o “eterno”, quando
foram acordá-lo, na manhã do dia seguinte. Consta que seu sepultamento foi
grandioso e que seu corpo foi conduzido ao túmulo acompanhado por uma desolada
multidão de atenienses. Teria, mesmo, acontecido assim? Vá se saber! Na
impossibilidade de confirmação ou de desmentido, essa é a versão que ficou, e
que, certamente, ficará para “sempre”. E mesmo esse “sempre” tem que ser
encarado com absoluta relatividade, concordam?.
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