Uma eleição que resume
a História
Pedro
J. Bondaczuk
As eleições, seja para
o que for, guardadas as devidas proporções, são bastante parecidas. Notem bem:
“parecem-se”, mas, óbvio, não são iguais. Não dá para se comparar, por exemplo,
a escolha da diretoria de um clube de futebol de várzea, ou a de um centro
acadêmico qualquer, ou de um grêmio estudantil de determinada escola, com a de
presidente da República de algum país, não importa qual. Elas diferem tanto na
importância quanto no processo. E aqui refiro-me a eleições “limpas”, em que
não haja fraudes de nenhuma espécie. A semelhança a que me refiro está na
cabala de votos, na tentativa dos candidatos de se elegerem.
O tema é bastante
explorado em literatura, e em seus mais variados ângulos. Li, no mínimo, uns
dez romances abordando o processo sucessório norte-americano, com tudo o que o
cerca. A mesma coisa aconteceu em relação a escolhas de papas, processo muito
mais fechado, com número bastante restrito de eleitores (no caso, os cardeais
da Igreja) cuja votação é tão secreta que o escritor só pode imaginar como
ocorre, sem a mínima possibilidade de comprovação de que seja mesmo da forma
que descreve. Já participei de algumas eleições, ganhei algumas (raras), perdi
outras (a maioria) e posso, portanto, discorrer sobre o assunto com certo
conhecimento de causa. Não sou “expert” no assunto, claro, e essa nunca foi
minha pretensão.
Conversei a respeito
com vários escritores, alguns consagrados e campeões de venda, e levantei a
questão se a eleição para alguma academia de letras não seria um bom assunto
para um romance. A maioria entendeu que não, que isso forneceria, quando muito,
enredo (e assim mesmo sem muito interesse) para um conto, se tanto. Alguns
disseram que até valeria uma tentativa, mas que implicaria em muito trabalho.
Essas opiniões valorizaram (pelo menos para mim), ainda mais a façanha de um
escritor, que sempre reputei como dos maiores não somente da Literatura
brasileira, mas mundial, que publicou, há umas quatro décadas, instigante
romance a propósito, que acabo de reler. Refiro-me a Jorge Amado.
O que me espantou foi o
fato de tantos ases literários não terem lido este livro (que ainda não
identifiquei neste texto), já que não se trata de obra de nenhum principiante.
Seu autor foi, até o surgimento deste fenômeno editorial, que é Paulo Coelho, o
escritor brasileiro que mais livros havia vendido através do mundo, com
traduções para dezenas de línguas. Concluo (talvez precipitadamente) que nem
todos os que escrevem e publicam obras literárias são tão ávidos leitores como
muitos (e eu também) supõem. Pior para eles. Quem não leu, não sabe o que
perdeu.
O romance, que fiz
tanto suspense em identificar, é “Farda, fardão, camisola de dormir”. Nele,
Jorge Amado trata da eleição (rigorosamente fictícia), não de uma academia
qualquer, um tanto obscura (sem desmerecer nenhuma delas, pois todas têm lá sua
importância). O processo sucessório em tela desenrola-se na prestigiosa e
superbadalada casa fundada por Machado de Assis. Isso mesmo, o enredo do
romance gira em torno de uma eleição para uma das cadeiras vagas da Academia
Brasileira de Letras. Foi muita ousadia de Jorge Amado. Não entendo a razão
deste não ser um dos livros mais populares do autor. É uma obra-prima,
principalmente de sugestão. É ótimo tanto no que foi escrito quanto, e
principalmente, no que foi deixado apenas subentendido nas entrelinhas.
E embora todos os
personagens (à exceção do então ditador Getúlio Vargas) sejam rigorosamente
fictícios, criados, portanto, pela mente fértil do genial romancista, o modo de
escolha da ABL (e de todas as academias de letras), e tudo o que o cerca, não o
são. São rigorosamente reais. Recorde-se que, na ocasião, o caudilho gaúcho (e
todos os puxa-sacos que o cercavam) eram simpatizantes das potências do Eixo,
notadamente da Alemanha nazista, de Adolf Hitler, cujos exércitos pareciam
imbatíveis, conquistando país após país. A imprensa era censurada e os porões
da ditadura estavam repletos de presos políticos, submetidos às mais
vexatórias, vis e covardes torturas.
E quem, na história de
Jorge Amado, foi lançado como candidato à cadeira vaga da Academia? Foi
justamente um militar. Até aí, nada demais. Mas além de vestir a farda, o
postulante era homem de confiança do regime. E mais: era o grande responsável
pelas inúmeras prisões de opositores do regime ou dos que eram somente
suspeitos e, sobretudo, pela prática indiscriminada de tortura. Tratava-se do
coronel Sampaio Pereira. E, suprassumo da ironia, essa figura brutal e tão
temida buscava conquistar a cadeira justamente do mais ferrenho dos democratas
da ABL, do poeta Antonio Bruno, “bom vivant”, apaixonado pela França e
principalmente por Paris, ocupados, na ocasião, pelos nazistas, que o militar
“venerava”.
Uma ala de acadêmicos,
inconformada com uma candidatura tão ruim, e até então única, decidiu combater
fogo com fogo. Lançou para a disputa da vaga outro militar, este um general
reformado, Waldomiro Moreira, não muito benquisto pelo regime. Nenhum dos dois
candidatos reunia méritos literários para postular vaga em sequer alguma
academia obscura do interior, quanto mais na ABL. Bem, resumindo as coisas, o
coronel morreu vítima de enfarte (quem quiser saber motivado pelo quê, que leia
o romance). Restou, pois, um único postulante. Todavia, muito antes da eleição,
o general assumiu atitudes antipáticas, autoritárias, palpitando a torto e a
direito no funcionamento da Academia, como se já fosse membro pleno dela (o que
não era). Granjeou, dessa forma, antipatias generalizadas.
Os acadêmicos
resolveram, então, derrotá-lo. Mas havia um único meio previsto no estatuto da
casa para isso: votando em branco ou anulando o voto, já que havia expirado o
prazo para o lançamento de outra candidatura. Foi o que aconteceu. No dia da
votação, o general estava em sua casa, ao pé do telefone, só aguardando o
resultado, e com um big banquete de comemoração da vitória já preparado,
esperando, somente, o desfecho da eleição que “estaria no papo”. Mas... não
estava. Houve, isto sim, rara e inédita unanimidade de votos. Mas brancos e
nulos. Quando o general Waldomiro soube disso, seu coração não resistiu. O
militar caiu duro, enfartado, morto, assim como havia ocorrido com seu rival de
farda, o coronel Sampaio Pereira. Ambos morreram por idêntica causa: excesso de
vaidade e... ferida!
Querem saber mais a
respeito do romance? Ora, ora, ora, comprem o livro e leiam!!! Certamente não
se arrependerão. Nele, a pretexto de uma simples e rotineira eleição na
Academia Brasileira de Letras, Jorge Amado traz à baila um dos períodos mais
complicados, terríveis e tensos não apenas da história política brasileira, mas
do mundo. Após a leitura, quem ainda não se convenceu, certamente se convencerá
que o prestígio do autor – não só no Brasil, mas em tantas partes do mundo –
foi mais do que merecido. Só os responsáveis pela atribuição do Prêmio Nobel de
Literatura nunca conseguiram enxergar isso. O romance é fruto de talento puro!
Ou melhor: é pura genialidade! Quem duvidar, confira.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
No comments:
Post a Comment