Friday, November 01, 2013

Compositor com samba nas veias

Pedro J. Bondaczuk

A memória dos brasileiros, em relação às pessoas que se destacaram nas mais diversas atividades – nas letras, na música, nas demais artes, nos esportes etc. – continua, lamentavelmente, curta. Basta uma década, se não menos, para que personalidades que foram ídolos no que faziam, em seu tempo, sejam completamente esquecidas, como se não tivessem feito nada que prestasse. Para ser justo, isso acontece não apenas no Brasil, mas em toda e qualquer parte do mundo. Contudo, o que ocorre lá fora pouco ou nada me interessa. Interessa, sim, o que ocorre onde vivo, que é aqui, neste amado e complicado “país tropical”.

Querem um exemplo? Quantos de vocês sabem alguma coisa a propósito de Wilson Batista, cujo centenário de nascimento ocorreu em 3 de julho deste 2013? O que ele fez, quem ele foi, onde nasceu e como viveu? Quantos sabem? Encontrei terríveis dificuldades para achar referências a seu respeito. Pesquisei, pesquisei e pesquisei, mas encontrei pouquíssimas informações. Estive a ponto de desistir de escrever a seu respeito, principalmente após recorrer ao meu já famoso bloco de anotações, onde registro detalhes e fatos pitorescos das várias biografias que leio e me frustrar. Também não encontrei nada a propósito desse artista, que tinha “samba nas veias”. Foi quando tive a súbita inspiração de consultar meus arquivos do tempo em que atuei como radialista.

No meio de uma infinidade de notas amareladas, algumas quase que já apagadas, achei uma específica, copiada do encarte de um CD de Wilson Batista, do acervo da Funarte (Coleção Musical Itaú Cultural/Samba e Choro). Dessa forma, conseguirei, mesmo que superficialmente, fazer justiça à memória de um dos grandes compositores da Música Popular Brasileira, desconhecido da imensa maioria das novas gerações e lembrado, posto que vagamente, por um ou outro dos seus contemporâneos. Até então eu dispunha, somente, da data e local do seu nascimento: 3 de julho de 1913, na cidade fluminense de Campos. Tempos atrás fiz um programa a propósito de um célebre duelo musical que ele travou com Noel Rosa (este sim justamente lembrado e reverenciado pelos amantes da MPB).

Esse confronto artístico foi bastante pitoresco e se tornou, por muito tempo, até folclórico. As novas gerações não o conhecem, embora volta e meia apresentadores de rádio o tragam à baila. Tudo começou quando Wilson Batista lançou o samba “Lenço no pescoço”, em que punha em dúvida a “malandragem” (e aqui o termo não tem caráter pejorativo, mas se refere à picardia de certo tipo de carioca) dos moradores de Vila Isabel, bairro tão exaltado por Noel Rosa, e contestava que essa localidade fosse uma espécie de berço do samba.

Sentindo-se “desafiado”, o boêmio e célebre compositor isabelense retrucou, com seu imortal “Feitio de oração”. Estava instalada a disputa. Wilson Batista voltou à carga, contestando, em sua letra, a letra composta por Noel. Este, por sua vez, compôs outro samba, respondendo e desafiando o oponente. Em resumo: houve por volta de dez composições, de parte a parte, com um contestando as afirmações do outro e vice-versa. Foi um confronto em que não houve vencedores. Terminou rigorosamente empatado. Aliás, minto. Houve vencedora, sim, e esta foi a MPB, que dessa forma pôde acrescentar ao seu acervo essas pérolas de picardia, ritmo e de poesia.

Wilson Batista de Oliveira (ao contrário de Noel Rosa que era médico, mas que trocou a Medicina pela boemia e, mais especificamente, pelo samba) era oriundo de família humilde. O pai era guarda municipal em Campos, no litoral fluminense. Ainda adolescente, tentou a profissão de marceneiro, tendo cursado aulas dessa especialidade no Liceu de Artes e Ofícios. Não levava jeito para a coisa e desistiu. Aos 15 anos mudou-se, com a família, para o Rio de Janeiro. Precisando ajudar no sustento da casa, foi trabalhar como acendedor de lampiões de gás. Naquela época, em 1928, a eletricidade ainda era raridade e as ruas da Cidade Maravilhosa eram (parcamente) iluminadas por esse arcaico meio. Não demorou muito no emprego. Seu sonho era ser compositor e já havia composto alguns sambas quando integrava o Bando Corbeille de Flores, tocando triângulo.

Logo, começou a se enturmar no Rio, freqüentando  rodas boêmias da Lapa (local que me traz tantas lembranças!) e da Praça Tiradentes, pontos de encontro de malandros, artistas, atores e atrizes e vai por aí afora. Chegou a tentar trabalhar em teatros da região, primeiro como eletricista e depois como contra-regra. Não deu certo em nenhuma das duas funções. Continuou compondo, mas não encontrava ninguém disposto a interpretar suas composições. Até que, em 1929, “perdeu a virgindade” artística, ocasião em que a grande vedete do teatro de revista, Araci Cortes, cantou, no palco, seu samba “Na Estada da Vida”. Foi a consagração. Daí para as gravações e o estrelato foi um pulo.

Wilson Batista teve, ao longo da vitoriosa carreira – cujo auge ocorreu nos anos 40 – notáveis parceiros. Destacaram-se, entre eles, astros como Ataulfo Alves, Nássara, Marino Pinto, Haroldo Lobo, Roberto Martins, Antonio Almeida, Orestes Barbosa e outros tantos “cobras” da MPB, um verdadeiro Butantã de sambistas. Um dos principais intérpretes de suas composições – cujo centenário de nascimento também transcorre neste 2013 e a cujo respeito escrevi há uns três meses – foi Ciro Monteiro. Vários outros cantores, todavia, emprestaram suas vozes aos grandes sucessos de Wilson Batista.

Entre sua vasta obra musical, destaco “Por favor, vai embora”, “Oh, seu Oscar” (sucesso do Carnaval de 1940, em parceria com Ataulfo Alves), “Acertei no milhar”, “O bonde de São Januário”, “Emília”, “Preconceito”, “A mulher que eu gosto”, “Meus vinte anos”, “Louco”, “Pedreiro Valdemar”, “Balzaquiana”, “Mundo de zinco”, “Mãe solteira” e, claro, “Lenço no pescoço”, que ensejou a famosa disputa com Noel Rosa, que o tornou, se não tão célebre quanto o “poeta da Vila”, pelo menos lembrado pelos raros contemporâneos ainda vivos e por historiadores da MPB. Wilson Batista não merece ser esquecido. Tenho convicção (ou pelo menos a esperança) que nunca será.


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