Conflito de poderes
Pedro J. Bondaczuk
A Argentina democrática de Raul Alfonsin vive, por
trás dos bastidores, uma estranha querela originada do conflito de dois dos
poderes da República (teoricamente independentes entre si e soberanos), o
Executivo e o Judiciário. Essa briga, inclusive, foi a responsável direta pela
decretação do estado de sítio naquele país, na sexta-feira passada, e vem sendo
o pivô do noticiário sobre esse acontecimento, com relaxamentos de prisões, em
terceira instância, sua confirmação, em segunda e acatamento de recursos em
favor dos réus em primeira e máxima.
Juízes nomeados pelas juntas militares anteriores,
no período de 1976 a 1983, que fizeram, dolorosamente, "vistas
grossas" a pelo menos nove mil violações comprovadas do maior dos direitos
que qualquer ser humano possui, o da vida, querem, agora, impedir a todo o
custo a detenção de doze pessoas, suspeitas de estarem por trás de uma onda de
atentados terroristas, em franca escalada nos últimos dois meses, em Buenos
Aires e em algumas localidades interioranas. Esses atos, visivelmente de
provocação às Forças Armadas argentinas, estão sendo atribuídos à
extrema-direita, a única que teria algo a lucrar com um golpe de Estado.
As prisões foram determinadas pelo próprio presidente
Alfonsin , no dia 15 último, com um prazo determinado de 60 dias. Mas no dia
seguinte a essa determinação, um juiz de Buenos Aires ordenou que elas fossem
relaxadas. Argumentou que a Constituição vedava detenções sem nenhuma acusação
formal, fundamentada nas respectivas provas do delito, a não ser em ocasiões
especiais, como durante a vigência do estado de sítio no país, o que não deixa
de ser um fato positivo. Também não morremos de amores pela chamada
"prisão cautelar", que dá margens a muitos abusos. Mas a questão que
surge de imediato é: "Será que, se os detentos fossem operários, ou
estudantes, ou donas de casa, nas mesmas circunstâncias, suas prisões teriam
sido relaxadas com tanta facilidade? Por que não se protegeu, então, todo esse
contingente que 'desapareceu' estranhamente anos atrás de suas residências,
para reaparecer sepultado em cemitérios clandestinos?"
O presidente Alfonsin, visando a agir estritamente
nos limites legais, concordou, todavia, com o juiz de terceira instância. Tanto
é que, para tornar sua ordem de prisão contra os doze suspeitos (seis civis e
seis militares), de acordo com as exigências constitucionais, portanto,
perfeitamente legal, decretou o estado de sítio no país. Afinal, a Constituição
faculta ao Executivo a decretação dessa medida sempre que haja conflitos
internos ou agressões externas. E a sociedade argentina está sendo mais uma vez
agredida pelo terror. Mesmo assim, agindo de maneira a não deixar nenhuma
dúvida quanto às razões da sua atitude, alguns magistrados confirmaram o
relaxamento de algumas prisões.
Aliás, em termos de América Latina, esse conflito de
poderes tem sido freqüente nos últimos tempos. No Equador, por exemplo,
persiste ainda até hoje uma controvérsia sobre a qual dos poderes cabe a tarefa
de nomeação dos juízes da Suprema Corte: se ao Executivo ou ao Legislativo.
Isso ensejou, até, uma situação curiosa. Os equatorianos, em certo período,
tiveram dois corpos de magistrados de máxima instância. Um escolhido pelo
presidente Leon Febres Cordero e outro pelo Congresso.
Em Honduras tivemos algo parecido no começo deste
ano. E um juiz da maior confiança do presidente Zuazo Córdoba teve que amargar
alguns dias de prisão por causa da controvérsia. O incidente chegou a
"elevar a temperatura" política em Tegucigalpa, desembocando num
cerco de tanques ao palácio de governo e gerando fortes rumores de manobra
golpista.
O presidente Raul Alfonsin terá ainda muita dor de
cabeça com os juízes nomeados pelo regime anterior, a maioria com
características muito apreciadas naquele triste período. Querelas jurídicas,
como a que ocorre atualmente no caso dessas 12 prisões, certamente vão se
repetir mais vezes. Principalmente agora que os que abusaram do poder a que se
auto-atribuíram durante a vigência de três juntas estão prestes a prestar
contas à sociedade (à mesma que um dia juraram defender com suas próprias
vidas) pelos equívocos e delitos cometidos.
(Artigo publicado na página 13, Internacional, do
Correio Popular, em 29 de outubro de 1985)
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