Thursday, November 07, 2013

Doação de órgãos


Pedro J. Bondaczuk


A nova lei de doação de órgãos para transplante --- que entrou em vigor no dia 1º e que torna todos os brasileiros que não manifestaram em documento de identidade vontade expressa em contrário, doadores presumidos --- vem causando intensa polêmica entre a população e a própria classe médica. Isso ocorre, na verdade, por pura desinformação.

Os contrários à medida argumentam que o Estado não tem competência para legislar sobre o que fazer com o corpo de uma pessoa. Os favoráveis, dizem que é muito simples a atitude que os que não querem doar devem tomar. Argumentam (e com razão) que basta que mandem colocar em seus documentos a condição de não doador e pronto. Sua vontade será respeitada. Ninguém irá extrair seus órgãos em caso de ocorrência de morte cerebral, única situação em que estes podem ser extraídos e aproveitados para transplantes.

Os médicos, com muito bom senso, estão dando às famílias a última palavra sobre o assunto, a despeito da lei. Se os parentes autorizam, realizam a extração de rins, fígado, coração, córnea, etc.. Claro, desde que sejam compatíveis e aproveitáveis. Nem todos o são. Aliás, boa parte não é. E desde que a morte cerebral seja comprovada, sem sombra de dúvidas, por três profissionais, não ligados às instituições responsáveis por transplantes, um dos quais necessariamente um neurologista. Caso contrário, não extraem os órgãos.

Não há, portanto, o mínimo risco de erros ou de fraudes. Está se fazendo, pois, muito barulho por pouca coisa. A maioria das pessoas que afirmam se opor à doação presumida confessa ter receio de que, para ficar com seus órgãos, sua vida seja abreviada em caso de internamento em hospital, principalmente em decorrência de algum acidente. Teme que a morte cerebral seja atestada mesmo quando não ocorrer de fato e quando houver ainda alguma possibilidade de recuperação.

Trata-se de um temor infantil e até injusto em relação à classe médica que, acima de tudo, tem um código de ética a nortear a sua atuação profissional. O leigo em medicina não consegue entender como alguém pode ser dado como morto se seu coração continua pulsando. Ocorre que uma parada cerebral --- não confundir com estado de coma, onde existe ainda alguma atividade e amplas chances de recuperação da consciência ---‚ irreversível. Com as salvaguardas impostas pela lei, a possibilidade de engano beira a zero.

O ato de doação é, além de nobre, uma forma de manter uma parte de nós viva, ao contrário do restante do organismo que irá se decompor. Devolve um semelhante à vida produtiva e útil que, sem um transplante, não teria nenhuma chance de sobreviver.

Além disso, a extração de órgãos, após a morte cerebral, não traz riscos e nem ônus para a família. Não há razões de qualquer espécie, a não ser a questão cultural, portanto, para tanta resistência. Mas se alguém, por qualquer motivação pessoal, não importa se egoística ou ilógica, não quiser praticar esse ato de suprema generosidade, o caminho a seguir é extremamente simples: basta declarar em um documento de identidade a condição de não doador.

(Texto escrito em 6 de janeiro de 1998 e publicado como editorial na Folha do Taquaral).
  

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