Pintando imagens apenas
com palavras
Pedro
J. Bondaczuk
A poesia é fascinante
por todos os motivos imagináveis. Não apenas por vasculhar a alma humana e
trazer à luz os sentimentos mais recônditos e difíceis de serem verbalizados.
É, também e, sobretudo, por sua “elasticidade”. Propicia ao escritor inúmeros caminhos
para se expressar. Tantos que ousaria afirmar que são infinitos, como nenhum
outro gênero literário lhe permite. Geralmente os poetas optam por determinada
forma de expressão, a mais compatível com seu estilo pessoal de escrever, e
utilizam-na ao longo da vida. Raros são os que experimentam outras tantas
maneiras e as usam com a mesma familiaridade e competência. Um deles foi
Rainer-Maria Rilke.
Trago este poeta, mais
uma vez, à baila, tendo por mote um post no Facebook da magnífica poetisa,
colunista deste espaço – de quem sou ardoroso fã, desses que se diz serem de
“carteirinha” e que considero uma das mais gratas revelações da poesia
brasileira – que é a Núbia Araujo Nonato do Amaral. Ela confessou, dia desses,
estar “encantada” com a poesia de Rilke, o que demonstra que, além de sensível
cultora de versos, tem excelente gosto literário do que, aliás, nunca duvidei.
Afinal, trata-se de um desses raros poetas que enveredaram por inúmeros
caminhos de expressão e que se deram bem em todos. Foi lírico, em determinada
fase da carreira, foi místico, foi realista, impressionista, existencialista,
expressionista e vai por aí afora. E em todas essas formas de encarar e fazer
poesia revelou idêntica criatividade e competência.
O aspecto que mais me
chama a atenção em Rilke é sua incrível capacidade descritiva. Nesse aspecto,
foi inigualável. Foi uma espécie de “pintor”, posto que se utilizava, para
retratar cenários, não telas, pincéis e tintas, mas o complicadíssimo recurso
da palavra, que soube utilizar como pouquíssimos. Sua vasta e eclética obra é
original, mesmo quando abordou temas absolutamente triviais. Jamais repisou
pegadas alheias. Formalmente, seus versos são irrepreensíveis, muitíssimo bem
cuidados. E as imagens que criou, posto que surpreendentes, são rigorosamente
precisas nos mínimos detalhes, autênticas fotografias, posto que (e aí é que
está seu principal mérito) somente com palavras, sem utilizar nenhum recurso
gráfico.
Quanto à temática,
embora vasta e variada, tem como cerne o homem, a natureza e a absoluta união
de ambos, dando a entender que um não pode viver sem o outro. E não pode mesmo.
Em certo aspecto (naquele que considero o mais difícil e notável) a poesia de
Núbia me lembra a de Rilke. Ela também tem o dom de “pintar” cenas magníficas
apenas com palavras. Outro paralelo que posso traçar é o tom místico de ambos,
cada qual no seu tempo e com sua realidade. Sem exagero algum, afirmo, sem
receio de contestação, que em alguns poemas nossa poetisa admirável supera o
mestre checo (registrado em todas as biografias e enciclopédias como austríaco,
mas que nasceu em Praga, atual capital da República Checa. Ocorre que quando do
seu nascimento, esse país integrava o território do Império Austro-Húngaro).
Claro que não me
proponho a traçar, nestas espontâneas e livres reflexões, um perfil biográfico
de Rilke – até porque já o fiz em outras oportunidades – e nem mesmo comentar
aspectos mais pitorescos de sua vida e obra. Pretendo, isso sim, usar a menção
ao seu nome como pretexto para reproduzir alguns (infelizmente poucos) de seus
poemas. São tantos os que gostaria de partilhar com vocês que não haveria
espaço suficiente para transcrever nem 1% do que merece transcrição. Delicio-me
com sua poesia (assim como Núbia o faz) e recomendo que o leitor faça o mesmo,
adquirindo seus livros maravilhosos.
O primeiro poema que o
convido a “saborear” é um soneto, intitulado “Parque dos papagaios”, com
tradução de Augusto de Campos:
“Sob tílias turcas, em silêncio,
balouçantes,
nos seus poleiros que a saudade
embala mais,
os papagaios sonham com terras
distantes
que, mesmo sem ser vistas, estão
sempre iguais.
Estranhos ao verde operoso como
atores
de pantomima, ostentam ares
superiores;
bicos de jaspe e jade investigam o
almoço
cinza que provam e repelem por
insosso.
As pombas tristes vêm ciscar nesses
detritos
enquanto no alto as graves aves
esquisitas
entre os pratos vazios fazem
piruetas;
balançam-se de novo e bicam, de olhos fitos,
as peias dos pés presos, com as
línguas pretas
que amariam mentir. Aguardam as
visitas”.
Notaram o talento
descritivo de Rilke? Não lhes parece estarem “vendo” os papagaios, as pombas e
o parque, tais como são? A mim parece. O segundo poema é de sua fase mística.
Tem como tradutor, igualmente, o eclético Augusto de Campos e intitula-se
“L’ange Du meridié” (Rilke, apesar de ser tido, com justiça, como um dos
melhores poetas em língua alemã de todos os tempos, compôs boa parte da sua
obra também em francês):
“Na tormenta que ronda a catedral
como um contestador que o seu juízo
mói e remói, é um bálsamo, afinal
ser-se atraído pelo teu sorriso:
anjo ridente, amável monumento,
com uma boca de cem bocas: não
te ocorre vislumbrar por um momento
o quanto as nossas horas já se vão
do teu relógio, onde a soma do dia
é sempre igual, em nítida harmonia,
como se as nossas horas fossem
plenas.
Pétreo, como saber das nossas
penas?
Acaso teu sorriso é mais risonho
à noite, quando expõe a pedra em
sonho?”
Este terceiro poema,
intitulado “O homem que lê”, já tem outro estilo, embora mantenha a principal
característica de Rilke: a descrição exata do que via ao seu redor, ou seja,
sua fenomenal capacidade descritiva:
“Eu
lia há muito. Desde que esta tarde
com o seu ruído de chuva chegou às janelas.
Abstraí-me do vento lá fora:
o meu livro era difícil.
Olhei as suas páginas como rostos
que se ensombram pela profunda reflexão
e em redor da minha leitura parava o tempo. —
De repente sobre as páginas lançou-se uma luz
e em vez da tímida confusão de palavras
estava: tarde, tarde... em todas elas.
Não olho ainda para fora, mas rasgam-se já
as longas linhas, e as palavras rolam
dos seus fios, para onde elas querem.
Então sei: sobre os jardins
transbordantes, radiantes, abriram-se os céus;
o sol deve ter surgido de novo. —
E agora cai a noite de Verão, até onde a vista alcança:
o que está disperso ordena-se em poucos grupos,
obscuramente, pelos longos caminhos vão pessoas
e estranhamente longe, como se significasse algo mais,
ouve-se o pouco que ainda acontece.
E quando agora levantar os olhos deste livro,
nada será estranho, tudo grande.
Aí fora existe o que vivo dentro de mim
e aqui e mais além nada tem fronteiras;
apenas me entreteço mais ainda com ele
quando o meu olhar se adapta às coisas
e à grave simplicidade das multidões, —
então a terra cresce acima de si mesma.
E parece que abarca todo o céu:
a primeira estrela é como a última casa”.
com o seu ruído de chuva chegou às janelas.
Abstraí-me do vento lá fora:
o meu livro era difícil.
Olhei as suas páginas como rostos
que se ensombram pela profunda reflexão
e em redor da minha leitura parava o tempo. —
De repente sobre as páginas lançou-se uma luz
e em vez da tímida confusão de palavras
estava: tarde, tarde... em todas elas.
Não olho ainda para fora, mas rasgam-se já
as longas linhas, e as palavras rolam
dos seus fios, para onde elas querem.
Então sei: sobre os jardins
transbordantes, radiantes, abriram-se os céus;
o sol deve ter surgido de novo. —
E agora cai a noite de Verão, até onde a vista alcança:
o que está disperso ordena-se em poucos grupos,
obscuramente, pelos longos caminhos vão pessoas
e estranhamente longe, como se significasse algo mais,
ouve-se o pouco que ainda acontece.
E quando agora levantar os olhos deste livro,
nada será estranho, tudo grande.
Aí fora existe o que vivo dentro de mim
e aqui e mais além nada tem fronteiras;
apenas me entreteço mais ainda com ele
quando o meu olhar se adapta às coisas
e à grave simplicidade das multidões, —
então a terra cresce acima de si mesma.
E parece que abarca todo o céu:
a primeira estrela é como a última casa”.
Recomendo-lhe
que leia a poesia de Rilke como todo poema deve ser lido. Ou seja, em voz alta,
respeitando rigorosamente a pontuação e atentando para os sons das palavras.
Faça isso com as que reproduzi acima e com esta, intitulada de “Recordação” e
que diz:
E tu
esperas, aguardas a única coisa
que aumentaria infinitamente a tua vida;
o poderoso, o extraordinário,
o despertar das pedras,
os abismos com que te deparas.
Nas estantes brilham
os volumes em castanho e ouro;
e tu pensas em países viajados,
em quadros, nas vestes
de mulheres encontradas e já perdidas.
E então de súbito sabes: era isso.
Ergues-te e diante de ti estão
angústia e forma e oração
de certo ano que passou.
que aumentaria infinitamente a tua vida;
o poderoso, o extraordinário,
o despertar das pedras,
os abismos com que te deparas.
Nas estantes brilham
os volumes em castanho e ouro;
e tu pensas em países viajados,
em quadros, nas vestes
de mulheres encontradas e já perdidas.
E então de súbito sabes: era isso.
Ergues-te e diante de ti estão
angústia e forma e oração
de certo ano que passou.
Gostaria de continuar partilhando com vocês
outros tantos poemas deste gênio do verso, indefinidamente, sem parar, mas não
farei isso, por motivos óbvios. Ademais, você não tem do que reclamar, meu
exigente leitor. Afinal, não é todo dia que pode se deliciar, e em uma mesma
edição, com a poesia de Rilke, com a de Núbia Araujo Nonato do Amaral e, ainda
de quebra, com a do magnífico Talis Andrade.
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