Monday, November 04, 2013

Pintando imagens apenas com palavras

Pedro J. Bondaczuk

A poesia é fascinante por todos os motivos imagináveis. Não apenas por vasculhar a alma humana e trazer à luz os sentimentos mais recônditos e difíceis de serem verbalizados. É, também e, sobretudo, por sua “elasticidade”. Propicia ao escritor inúmeros caminhos para se expressar. Tantos que ousaria afirmar que são infinitos, como nenhum outro gênero literário lhe permite. Geralmente os poetas optam por determinada forma de expressão, a mais compatível com seu estilo pessoal de escrever, e utilizam-na ao longo da vida. Raros são os que experimentam outras tantas maneiras e as usam com a mesma familiaridade e competência. Um deles foi Rainer-Maria Rilke.

Trago este poeta, mais uma vez, à baila, tendo por mote um post no Facebook da magnífica poetisa, colunista deste espaço – de quem sou ardoroso fã, desses que se diz serem de “carteirinha” e que considero uma das mais gratas revelações da poesia brasileira – que é a Núbia Araujo Nonato do Amaral. Ela confessou, dia desses, estar “encantada” com a poesia de Rilke, o que demonstra que, além de sensível cultora de versos, tem excelente gosto literário do que, aliás, nunca duvidei. Afinal, trata-se de um desses raros poetas que enveredaram por inúmeros caminhos de expressão e que se deram bem em todos. Foi lírico, em determinada fase da carreira, foi místico, foi realista, impressionista, existencialista, expressionista e vai por aí afora. E em todas essas formas de encarar e fazer poesia revelou idêntica criatividade e competência.

O aspecto que mais me chama a atenção em Rilke é sua incrível capacidade descritiva. Nesse aspecto, foi inigualável. Foi uma espécie de “pintor”, posto que se utilizava, para retratar cenários, não telas, pincéis e tintas, mas o complicadíssimo recurso da palavra, que soube utilizar como pouquíssimos. Sua vasta e eclética obra é original, mesmo quando abordou temas absolutamente triviais. Jamais repisou pegadas alheias. Formalmente, seus versos são irrepreensíveis, muitíssimo bem cuidados. E as imagens que criou, posto que surpreendentes, são rigorosamente precisas nos mínimos detalhes, autênticas fotografias, posto que (e aí é que está seu principal mérito) somente com palavras, sem utilizar nenhum recurso gráfico.

Quanto à temática, embora vasta e variada, tem como cerne o homem, a natureza e a absoluta união de ambos, dando a entender que um não pode viver sem o outro. E não pode mesmo. Em certo aspecto (naquele que considero o mais difícil e notável) a poesia de Núbia me lembra a de Rilke. Ela também tem o dom de “pintar” cenas magníficas apenas com palavras. Outro paralelo que posso traçar é o tom místico de ambos, cada qual no seu tempo e com sua realidade. Sem exagero algum, afirmo, sem receio de contestação, que em alguns poemas nossa poetisa admirável supera o mestre checo (registrado em todas as biografias e enciclopédias como austríaco, mas que nasceu em Praga, atual capital da República Checa. Ocorre que quando do seu nascimento, esse país integrava o território do Império Austro-Húngaro).

Claro que não me proponho a traçar, nestas espontâneas e livres reflexões, um perfil biográfico de Rilke – até porque já o fiz em outras oportunidades – e nem mesmo comentar aspectos mais pitorescos de sua vida e obra. Pretendo, isso sim, usar a menção ao seu nome como pretexto para reproduzir alguns (infelizmente poucos) de seus poemas. São tantos os que gostaria de partilhar com vocês que não haveria espaço suficiente para transcrever nem 1% do que merece transcrição. Delicio-me com sua poesia (assim como Núbia o faz) e recomendo que o leitor faça o mesmo, adquirindo seus livros maravilhosos.

O primeiro poema que o convido a “saborear” é um soneto, intitulado “Parque dos papagaios”, com tradução de Augusto de Campos:

“Sob tílias turcas, em silêncio, balouçantes,
nos seus poleiros que a saudade embala mais,
os papagaios sonham com terras distantes
que, mesmo sem ser vistas, estão sempre iguais.

Estranhos ao verde operoso como atores
de pantomima, ostentam ares superiores;
bicos de jaspe e jade investigam o almoço
cinza que provam e repelem por insosso.

As pombas tristes vêm ciscar nesses detritos
enquanto no alto as graves aves esquisitas
entre os pratos vazios fazem piruetas;

 balançam-se de novo e bicam, de olhos fitos,
as peias dos pés presos, com as línguas pretas
que amariam mentir. Aguardam as visitas”.

Notaram o talento descritivo de Rilke? Não lhes parece estarem “vendo” os papagaios, as pombas e o parque, tais como são? A mim parece. O segundo poema é de sua fase mística. Tem como tradutor, igualmente, o eclético Augusto de Campos e intitula-se “L’ange Du meridié” (Rilke, apesar de ser tido, com justiça, como um dos melhores poetas em língua alemã de todos os tempos, compôs boa parte da sua obra também em francês):


“Na tormenta que ronda a catedral
como um contestador que o seu juízo
mói e remói, é um bálsamo, afinal
ser-se atraído pelo teu sorriso:

anjo ridente, amável monumento,
com uma boca de cem bocas: não
te ocorre vislumbrar por um momento
o quanto as nossas horas já se vão

do teu relógio, onde a soma do dia
é sempre igual, em nítida harmonia,
como se as nossas horas fossem plenas.

Pétreo, como saber das nossas penas?
Acaso teu sorriso é mais risonho
à noite, quando expõe a pedra em sonho?”

Este terceiro poema, intitulado “O homem que lê”, já tem outro estilo, embora mantenha a principal característica de Rilke: a descrição exata do que via ao seu redor, ou seja, sua fenomenal capacidade descritiva:

“Eu lia há muito. Desde que esta tarde
com o seu ruído de chuva chegou às janelas.
Abstraí-me do vento lá fora:
o meu livro era difícil.
Olhei as suas páginas como rostos
que se ensombram pela profunda reflexão
e em redor da minha leitura parava o tempo. —
De repente sobre as páginas lançou-se uma luz
e em vez da tímida confusão de palavras
estava: tarde, tarde... em todas elas.
Não olho ainda para fora, mas rasgam-se já
as longas linhas, e as palavras rolam
dos seus fios, para onde elas querem.
Então sei: sobre os jardins
transbordantes, radiantes, abriram-se os céus;
o sol deve ter surgido de novo. —
E agora cai a noite de Verão, até onde a vista alcança:
o que está disperso ordena-se em poucos grupos,
obscuramente, pelos longos caminhos vão pessoas
e estranhamente longe, como se significasse algo mais,
ouve-se o pouco que ainda acontece.

E quando agora levantar os olhos deste livro,
nada será estranho, tudo grande.
Aí fora existe o que vivo dentro de mim
e aqui e mais além nada tem fronteiras;
apenas me entreteço mais ainda com ele
quando o meu olhar se adapta às coisas
e à grave simplicidade das multidões, —
então a terra cresce acima de si mesma.
E parece que abarca todo o céu:
a primeira estrela é como a última casa”.

Recomendo-lhe que leia a poesia de Rilke como todo poema deve ser lido. Ou seja, em voz alta, respeitando rigorosamente a pontuação e atentando para os sons das palavras. Faça isso com as que reproduzi acima e com esta, intitulada de “Recordação” e que diz:

E tu esperas, aguardas a única coisa
que aumentaria infinitamente a tua vida;
o poderoso, o extraordinário,
o despertar das pedras,
os abismos com que te deparas.

Nas estantes brilham
os volumes em castanho e ouro;
e tu pensas em países viajados,
em quadros, nas vestes
de mulheres encontradas e já perdidas.

E então de súbito sabes: era isso.
Ergues-te e diante de ti estão
angústia e forma e oração
de certo ano que passou.

 Gostaria de continuar partilhando com vocês outros tantos poemas deste gênio do verso, indefinidamente, sem parar, mas não farei isso, por motivos óbvios. Ademais, você não tem do que reclamar, meu exigente leitor. Afinal, não é todo dia que pode se deliciar, e em uma mesma edição, com a poesia de Rilke, com a de Núbia Araujo Nonato do Amaral e, ainda de quebra, com a do magnífico Talis Andrade.


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