Pecados nossos de cada
dia
Pedro
J. Bondaczuk
O brasileiro é, mesmo,
um povo peculiar. É irreverente e faz piada com tudo e com todos, mesmo e
principalmente com o que o aborrece e o amofina. Claro que me refiro à maioria,
posto que há exceções. Volta e meia cruzamos com tipos azedos, amargos,
constantemente mal humorados, não raro mal educados e, ainda por cima, metidos
a moralistas de plantão, do tipo “faça o que falo e não o que faço”. Esses
chatos existem aos montões e pedimos aos céus que nos livrem de cruzarmos com
eles, pois, caso cruzemos, nosso dia estará irremediavelmente arruinado. Não é
destes que quero falar.
Mas, voltando à nossa
principal peculiaridade, que é à nossa irreverência, dessas de vaiarmos até um
minuto de silêncio nos estádios em memória de alguém, mesmo que este alguém
seja quem admiramos, entre tantas e tantas coisas de que rimos, fazendo
gracejos de toda a sorte, a mais caricaturada é a nossa famosa e tão conhecida
“vigarice”. São de nossos pecadilhos de cada dia. Muitos, certamente, não
concordarão com minhas colocações e se sentirão ofendidos com elas. Ou seja,
“vestirão a carapuça”. Todavia são raros, raríssimos os que jamais burlaram, ou
tentaram burlar, alguma lei ou norma moral, sem se darem conta que esses
procedimentos caracterizam e tipificam atos de corrupção.
As pesquisas mostram
que a maior oposição do brasileiro, explicitada na recente série de protestos
de rua que varreu o País de ponta a ponta, é a ação de corruptos, sobretudo na
vida pública, mais especificamente na política. De fato, não há quem não
condene as atitudes dos eufemisticamente chamados “representantes do povo” (os
que delinqüem, claro, porquanto há também os honestos, mas que acabam incluídos
entre os pecadores, em injusta e estúpida generalização, tão ao gosto da
maioria), que causam repulsa não somente pela “rapinagem” que praticam nos
cofres públicos, mas pelo cinismo com que atuam;
Todavia, os que mais
deblateram contra a sempre condenável corrupção, os mais irados que apregoam as
piores punições imagináveis aos infratores que forem pilhados em atos de
pilhagem, são, curiosamente, os que mais tentam “levar vantagem em tudo”.
Claro, não levam vantagem em nada. Talvez sua ira deva-se a isso.
Subconscientemente, gostariam de estar no lugar dos que condenam com tamanha
ênfase. E se estivessem... dificilmente deixariam de se corromper, e até de
forma pior do que os alvos dos seus ataques.
Nossa vigarice do dia a
dia é, desde que me conheço por gente, inesgotável filão temático para nossos
principais escritores. Basta atentar para os enredos dos principais romances,
contos e novelas nacionais. Neles, invariavelmente, há um vilão, ou vários
vilões, praticando toda a sorte de patifarias. Basta lembrar, por exemplo,
alguns personagens de telenovelas, uma das paixões nacionais ao lado do
futebol, do carnaval, da feijoada, da caipirinha e do bum bum (não
necessariamente nesta ordem). Quem não se lembra, por exemplo, dos personagens
mau caráter de “Guerra dos sexos”, de “Vereda tropical”, de “Um sonho a mais”,
de “Ti-ti-ti” e, mais recentemente, de “Avenida Brasil”, para citar apenas
algumas dessas produções dramatúrgicas tão ao gosto do brasileiro?
Atentemos para essa
criação bem humorada, posto que, indiretamente, de severa crítica social, do
excelente Sílvio de Abreu, que foi a novela “Cambalacho”. Seu próprio título já
sugere qual foi seu teor. Para a maiorias dos telespectadores, não passou de descontraída chanchada, com cenas
hilariantes, aparentemente destinadas apenas a “distrair” e não a criticar.
Contudo tratou-se (no fundo, no fundo) de inteligente crítica social. Não a
chata e dogmática, tão ao gosto dos adeptos do denuncismo vazio e calhorda, com
a finalidade precípua, senão única, de agradar platéias alienadas.
Sílvio criticou, indiretamente,
os maus hábitos, os maus costumes, a vigarice entranhada em nosso comportamento
cotidiano, mas de forma leve, criativa, divertida e ao alcance do mais bronco
dos broncos dos cidadãos. De um lado, o enredo enfocou um casal de vigaristas
pobres, interpretado, magistralmente, por uma “dupla de responsa” da nossa
dramaturgia: Fernanda Montenegro e Gianfrancesco Guarnieri, que dispensa
comentários. No outro extremo, tratou das vigarices de uma personagem abastada,
no caso a Andrea, interpretada por Natália do Valle – na verdade não rica, mas
que pretendia que pensassem que o fosse – que tentou aplicar o manjadíssimo
“golpe do baú” no milionário Antero (vivido pelo saudoso e talentoso Mário
Lago), senhor idoso, que ficou caidinho por seus dores físicos. Como se vê,
abordou os dois lados da moeda, para explicar, didaticamente, que a corrupção
não depende de sexo, de crença, de situação econômica ou de classe social. É,
rigorosamente, “democrática”. E tanto no Brasil, quanto em qualquer parte do
mundo.
Assim, o telespectador
teve a oportunidade de refletir (só não garanto que o tenha feito) sobre a
grande distorção nos nossos hábitos e comportamentos sociais, quando ser
honesto é tido e havido (embora a maioria negue) como sinônimo de burrice e a
malandragem é ostentada não como grave defeito de conduta, mas como natural
manifestação de esperteza. Dizer esse tipo de coisa de maneira séria e
objetiva, não causaria impacto e traria uma série de aborrecimentos ao autor,
que certamente seria bombardeado por críticas furiosas, de todos os tipos,
vindas de todos os lados. Mas deixar isso implícito em situações hilariantes,
provavelmente induziu o telespectador (pelo menos alguns deles) a meditar a
respeito.
Com o tempo, quem sabe,
algumas vigarices consideradas inofensivas, ganharão a dimensão que sempre
deveriam ter. Um ato de desonestidade, do ponto de vista moral, não deve ser
avaliado apenas pelo valor material envolvido na trapaça. Moralmente, surrupiar
uma fruta na quitanda, supermercado ou feira livre tem o mesmo peso que
assaltar um banco desde que não envolva violência física. Tentar subornar um
guarda de trânsito para que não lhe aplique multa equivale (guardadas as
proporções) a superfaturar uma obra. Sonegar imposto, furar fila, vender o que
não lhe pertence, passar cheque sem fundo etc. etc.etc. tem peso parecido a
utilizar jatos do governo para compromissos particulares, comprar votos para se
eleger ou fraudar uma licitação, entre tantos e tantos atos de corrupção. Em
todos esses casos, o infrator estará apropriando-se de algo que por direito não
lhe pertence e/ou prejudicando o próximo, abusando de sua boa fé.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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