Friday, November 29, 2013

O eclético Boi bumbá

Pedro J. Bondaczuk

O Brasil, em termos de cultura, ainda é um país à espera de ser “descoberto” pelos próprios brasileiros, a despeito dos avanços dos meios de comunicação e de transportes. Os habitantes do Norte, por exemplo, pouco (ou nada) conhecem dos comportamentos, costumes, manifestações populares e folguedos folclóricos típicos do Sul e vice-versa. Desconhecem, um do outro, lendas, comidas típicas, artesanato e outras tantas coisas características de cada região. Pouca gente, por exemplo, já assistiu algum dia a uma apresentação (ou pelo menos tomou conhecimento dela) do “Boi Bumbá” de Rondônia. Às vezes, nem mesmo moradores daquela parte do país tiveram esse privilégio.

De acordo com registros históricos (raros), esse folguedo surgiu, ali, há 93 anos, em 1920, quando o Estado ainda se chamava Território do Guaporé e pertencia ao Mato Grosso, antes que este fosse desmembrado nas partes Norte e Sul. Apesar de suas profundas raízes populares, esse festejo popular já esteve a pique de desaparecer, em todo o Brasil, em virtude de perseguições da polícia e, sobretudo, do preconceito cultural dos que não o entendem e, por isso, não o apreciam ou dos que sequer o conhecem e acham que se trata de “coisa de desocupados”. Mas sua origem no País é antiga, antiqüíssima, perde-se no tempo. É, em essência, um auto ou drama pastoril ligado à forma de teatro representativa das festas de Natal.

Recebe as mais diversas denominações País afora. É conhecido, por exemplo, no Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Sul pelo nome de “Bumba meu boi”. Todavia, mesmo nestes Estados, dependendo da região em que é encenado, recebe outros tantos “rótulos”. Por exemplo, no Maranhão e no Piauí, é conhecido, em algumas cidades, como “Boi de Reis”, por ser festejado no “Dia de Reis”, ou seja, 6 de janeiro de cada ano. No Ceará recebe diversos outros nomes, como “Reisado cearense”, “Boi de reis”, e “Reis boi surubim”. Já no Rio Grande do Norte, seus praticantes conhecem-no como “Boi calemba”, “Boi calumba” e “Rei do boi”.

Essa variedade de denominações ocorre, também, em outros Estados (reitero, em quase todos do País). Assim, no Pernambuco e Paraíba é chamado ora de “Boi”, ora de “Cavalo marinho”. No Rio de Janeiro é chamado de “Reis de boi”. No Rio Grande do Sul é “Boi bumbá” e “Boizinho”; no Amazonas, “Boi bumbá”; no Espírito Santo, “Bumba de Reis” e no Paraná e Santa Catarina, “Boi de mamão”.

O folguedo é longuíssimo, atingindo, não raro, até oito horas de duração. Conta com muitos personagens, mas, basicamente, eles são de três tipos: fantásticos, animais e humanos, todos devidamente caracterizados, alguns com fantasias riquíssimas e suntuosas (dependendo, óbvio, da região e da sua condição econômica). A representação envolve cantos e danças, como os enredos das escolas de samba do Carnaval, e é marcada ao som da zabumba, do ganzá e do pandeiro, este último tocado pela “cantadora”, que canta loas e toadas alusivas ao tema. Nos intervalos entre um ato e outro, autênticos acrobatas desenvolvem coreografias de intensa complexidade e beleza plástica.

Entre os personagens do “Bumba meu boi”, nome pelo qual o folguedo é mais conhecido, a despeito das tantas outras denominações, se destacam: Entre os fantásticos - Jaraguá, Mané Pequenino, Morto Carregando o Vivo, o Diabo, Babau e Caipora; entre os animais – boi, ema, pica-pau, cobra, cavalo marinho, e burrinha e entre os humanos – Capitão (o dono da festa), Capitão do Mato, Zebelinha, Sacristão, Mané Gostoso, Queixoso, Doutor Bastião, Mestre do Tear, Valentão, Mateus, Pastorinha, Romeiro, Fiscal, Padre, Arlequim e Engenheiro.

A respeito do “Boi bumbá” de Rondônia, sobre o qual me proponho a esboçar, nos próximos dias, algumas considerações especiais (pelo fato de, ali, o folguedo haver adquirido, com o tempo, algumas características próprias), sabe-se que essa manifestação folclórica foi levada para esse Estado por migrantes do Norte e do Nordeste, que foram para lá quando da construção da lendária ferrovia “Madeira-Mamoré”, a tal da qual se diz que cada dormente equivale a um operário morto na tarefa de construí-la. As primeiras apresentações, que datam de 1920, ocorreram na localidade de Santo Antônio, a sete quilômetros, por via fluvial, da capital, Porto Velho.

De acordo com depoimento do escritor Matias Mendes (contestado por autoridades da época), o “Boi bumbá” foi perseguido, em Rondônia, em duas fases distintas. Na primeira, por dirigentes civis do então território federal de Guaporé, que consideravam a festa como mero pretexto para bebedeiras, arruaças e badernas. Não era nada disso, óbvio. Mas... Está bem, em alguns casos, eram, de fato.


O folguedo, naqueles primórdios, tinha algumas características da “Folia de Reis”, muito difundida no Leste do País. Seus integrantes saíam às ruas, mascarados, para brincar. E quando grupos rivais se cruzavam, as pancadarias (algumas até com várias mortes) eram inevitáveis. Passada essa fase inicial de perseguição, que o “Boi bumbá” resistiu tenazmente a despeito de ser proibido, o folguedo enfrentou uma outra oposição, ainda mais renhida, radical e difícil de ser superada, que foi a etapa do preconceito cultural, que quase o leva ao desaparecimento. Mas, disso, tratarei em outra oportunidade.

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