Tuesday, November 26, 2013

Reflexões à margem da História

Pedro J. Bondaczuk

A história da humanidade, desde o início da civilização, há uns dez mil anos (ninguém sabe com exatidão qual foi o marco inicial, que pode, apenas, ser estimado e assim mesmo com enorme margem de erro) sempre se caracterizou pela emergência de algum grande império que, pela força das armas, e jamais a das idéias, submeteu os demais povos a uma incômoda, mas realística, vassalagem. Egito, Caldéia, Assíria, Babilônia, Medo-Pérsia, Grécia e Roma tiveram seus períodos de predomínio, apenas para citar os mais evidentes. Talvez se pudesse incluir nesse rol os atlântidas, caso se pudesse comprovar, com provas concretas e indiscutíveis, que essa civilização de fato existiu e não foi mera lenda, como a imensa maioria crê. Não se pode, todavia.

Até muito recentemente, essa realidade histórica também ocorria, mas com dois grandes impérios, ao invés de um único, mas em tudo antagônicos: Estados Unidos e União Soviética. Ambos assumiam posição maniqueísta. Cada um deles se dizia o suprassumo do bem e, por conseqüência, impingia ao rival a personificação de todo o mal. Um era o Ocidente, o outro, o Oriente. Um era o predomínio do capital sobre o trabalho. O outro pretendia ser o reverso dessa medalha (embora fosse algo profundamente contestável). Ambos, todavia, na sua essência, tinham algo que os identificava e tornava semelhantes, a despeito da profunda diferença de métodos e de doutrinas: a paranóia contra o indivíduo, contra o ser humano isolado, desvinculado de qualquer grupo social, sistema ou ideologia.

Um demonstrava isso através da figura abstrata, mas onipresente, do Estado, em nome do qual tudo seria válido, até mesmo a irrestrita e completa anulação da individualidade, para o estabelecimento de um coletivismo utópico, indesejável e impraticável (senão injusto). Outro anulava (e ainda anula, pois sobrevive, ao contrário do seu antípoda, que “desapareceu”) o indivíduo por meio de corporações, mediante métodos a priori menos cruéis, é verdade, mas que se propunha (e se propõe) intrinsecamente a fazer prevalecer a mesma coisa do antagonista: a anulação pessoal em favor da massificação, tendo como apanágio essa figura posta como uma espécie de divindade dos tempos modernos chamada, eufemisticamente, de “mercado”.
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Para tanto, adotava (e adota) maneiras sumamente sutis, mediante “seleção natural” de pessoas, instituindo, tacitamente, algo denominado de “escala social”, ou de “pirâmide”, que teoricamente era (e é) bastante flexível e oferecia (e oferece) oportunidades iguais para todos. Oferece? Na prática... Bem, na prática, a teoria é bem outra. E o processo de exclusão da imensa maioria da população mundial, mediante a criação de rígidas e inflexíveis “castas”, em que conta o “ter” em detrimento do “ser”, se materializa através da educação (ou da falta dela). A grande verdade é que o mundo esteve, na prática, excluindo os jargões das duas ideologias, em ininterrupto conflito, até os anos derradeiros do século XX. Manteve-se sob ocupação das superpotências. Isso ficava mais evidenciado na Europa, onde tropas e mísseis nucleares de Estados Unidos e União Soviética tornavam aquele continente, repositório das mais legítimas heranças culturais da humanidade, num terreno virtualmente minado. Não posso assegurar se as coisas ainda continuam assim ou não. É provável que continuem, agora que restou uma única superpotência, hegemônica e inigualável em qualquer aspecto que se queira considerar.

Gosto de refletir a esse propósito. Durante muitos anos, minhas reflexões a respeito tinham o caráter imediatista do jornalista, atento aos fatos do dia, sem o necessário distanciamento já não digo do longo prazo, mas mesmo do médio. Hoje minha visão é a do escritor, muito mais lenta, porém segura, com margem de erro muito menor. É feita com o indispensável distanciamento no tempo e com uma soma de informações infinitamente maior do que a que estava à disposição do profissional de imprensa, quando o que ocorria “ontem” não era mais considerado no “hoje”, por ter ficado “velho”, mesmo que continuasse gerando conseqüências (e sempre continua).
  
Quando nasci, ainda não havia o que ficaria conhecido como “guerra fria”. As duas superpotências ainda estavam em processo de formação. Ambas eram aliadas na luta contra o perigo nazista, representado pelas três potências do Eixo, Alemanha, Itália e Japão, que tentavam impor sua hegemonia a poder de armas. Embora combatendo do mesmo lado, porém, ambas já mostravam diferenças inconciliáveis, que viriam a se acentuar na sequência dos acontecimentos.

Pitorescamente, a “guerra fria” teve como raiz um “acordo”: o de Yalta. E este foi obtido na reunião de cúpula realizada de 4 a 11 de fevereiro de 1945, na cidade da Criméia que deu nome ao pacto. O encontro reuniu o então presidente dos Estados Unidos, Franklin Delano Roosevelt (já adoentado e próximo da morte, que viria a ocorrer meses depois), o (legendário) primeiro-ministro britânico, Winston Churchill e o ditador soviético Josep Stalin. Basicamente, ao cabo dessas negociações tripartites, foram fixados os limites da Europa do pós-guerra, com o estabelecimento das zonas de influência de Moscou e de Washington e seu sempre fiel (ou subserviente^) aliado.

A “guerra fria” começou porque, na prática, nenhum dos lados estava disposto a restringir sua influência, ou domínio, aos limites impostos. Findo o conflito mundial, a Alemanha derrotada foi partilhada. O mesmo ocorreu com sua capital, Berlim, que se transformou em um enclave em pleno território da parte alemã sob domínio soviético. A URSS sonhava (e agia) para que toda a cidade permanecesse na sua esfera de domínio. Chegou a impor um bloqueio, que por pouco n/ao levou as superpotências a uma “guerra quente”. A partir daí, e até o acordo de Malta, de 1989, os dois gigantes ideológicos conviveram em clima de permanente beligerância, agravado pela corrida armamentista nuclear.

Foram dezenas os incidentes que por muito pouco não redundaram em um impensável holocausto atômico que, se acontecesse, significaria a destruição do Planeta e a extinção da vida nele. O mais grave, foi o caso dos mísseis soviéticos em Cuba, em 1962. Mas não foi o único. Ocorreram vários e vários outros, a maioria dos quais sequer vazou para a imprensa. Quando a União Soviética se desagregou, em 1991 e deixou de existir, o mundo, finalmente, respirou aliviado.

Nos dias que correm, os analistas e intelectuais, salvo exceções, contudo, continuam condicionados a raciocinar por esse modelo maniqueísta antigo, do tempo da guerra fria. Isso funciona na base do “quem não está comigo, está contra mim”. Quem não é capitalista, é comunista (ou radical islâmico, como se tornou moda rotular os antagonistas, ou algo que o valha) e vice-versa. Não admitem “tertius”. Convenhamos, é incrível falta de imaginação desse ser contraditório, que conseguiu tantos e tão magníficos saltos tecnológicos, que já possui condições de deixar o seu domo cósmico para explorar o espaço exterior, mas que ainda não aprendeu, passados dez milênios de civilização, os princípios mais elementares de uma convivência pacífica e, portanto pródiga de fraternidade, e com o respeito às diferenças mútuas.

Dois milênios depois de Cristo, o império contemporâneo remanescente, os Estados Unidos, pauta sua conduta pelos mesmos princípios da última potência do passado, Roma, através da adoção de um similar da “pax romana”, a paz dos cemitérios. Assumiu o papel, que ninguém ousa contestar (por razões óbvias) de “gendarme do mundo”, mas levando em conta não os interesses da humanidade, mas apenas os próprios. Onde isso vai dar? Qual o papel da nova superpotência emergente, ainda mal saída do casulo, no caso a China, nesse novo quadro estratégico mundial? Só o tempo poderá dizer (ou não).  Agora existem as armas atômicas. E se, por suprema desgraça, vierem a ser usadas, num momento de extremo desvario, seja qual for a razão, certamente transformarão este planeta, azul e brilhante, nosso domo cósmico, na eterna sepultura de mais de 7 bilhões de insensatos, que nunca aprenderam a se entender.


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