Quando o acaso é
decisivo
Pedro
J. Bondaczuk
A preservação da
memória – ouso afirmar fundamentado em inúmeras provas – é fruto do acaso, ou
seja, de determinadas circunstâncias casuais e... únicas. Há, por exemplo, quem
produza obras fantásticas, originais (claro), não raro úteis a milhões de
indivíduos (embora não necessariamente), beirando à perfeição – materiais e/ou
espirituais, de artes ou de ciências ou de tantas outras naturezas – que, por uma
razão ou por outra (ou mesmo sem nenhuma), acabam se perdendo no tempo.
Passados escassos anos, ninguém mais se lembra delas e muito menos de quem as
produziu. Por que? Como explicar?!!!
Há, por outro lado,
pessoas que pouco ou nada fizeram vida afora, mas que, em um súbito e às vezes
único momento casual, classificado, eufemisticamente, como de
“inspiração”, compõem determinado poema
ou então marcante sinfonia; pintam alguma tela específica; esculpem certa escultura
especial, ou fazem outra coisa qualquer a que sequer dão importância no momento
em que produzem e...o que fizeram permanece, e passa de geração a geração,
tornando seu autor “imortal” na fragílima memória da humanidade. Por que isso
acontece? Há alguma explicação? Se houver, desconheço.
Um dos casos que mais
me intrigam é o da inglesa Sarah Flower Adams, nascida na cidadezinha de
Harlow, Condado de Essex, na Inglaterra, em 22 de fevereiro de 1805. Desde
criança, essa senhora mostrou inequívoca vocação para a Literatura. Compôs
poemas e mais poemas elogiados pelos que tiveram acesso a eles, escreveu toda a
sorte de textos literários, todos impecáveis, publicados em jornais locais ou
de outras cidades de época (e seu pai era editor), no entanto, ela apenas se
tornou conhecida, nas mais diversas partes do mundo, não por algum eventual
livro que tenha virado best-seller (aliás, não me consta que algum dia tenha
publicado um único que fosse), mas como autora de um hino de louvor a Deus,
conhecidíssimo, e não somente nos círculos evangélicos, mas até em ambientes,
digamos, profanos, por pessoas nem um pouco religiosas.
É certo que uma série
de circunstâncias imprevistas contribuíu decisivamente para isso. Não houvesse
ocorrido, sua composição seria conhecida, sim, mas apenas no âmbito das igrejas
evangélicas (o que não seria pouco, mas não teria a abrangência que hoje tem).
Ocorre que o hino que compôs, “Mais perto quero estar”, foram os derradeiros
acordes que os sobreviventes do naufrágio do “Titanic” ouviram, como uma
espécie de trilha sonora dessa tragédia, enquanto o gigantesco transatlântico
era lentamente engolido pelas águas do Atlântico Norte. O que levou a banda do
navio a executar, naquele momento tão dramático, justamente essa melodia, e não
outra qualquer? Quem conhece esses acordes pode, passados mais de cem anos
desse desastre, ouvir nitidamente os sons plangentes, de súplica e de fé,
saídos do violino “indestrutível” de Wallace Hartley, o maestro do conjunto,
cortando o ar gelado daquela noite de 14 de abril de 1912. Basta fechar os olhos
e dar asas à imaginação.
Relatos de testemunhas
(e foram mais de mil que se salvaram da morte), comprovaram que era esta, de
fato, a melodia tocada durante o naufrágio. A notícia logo se espalhou pela
imprensa mundial e ganhou, até, foros de lenda. E a composição (magnífica, por
sinal) de Sarah Flower Adams, em parceria com o músico norte-americano Lowell
Mason, perpetuou-se na memória coletiva. O hino, composto em 1841, não se
destinou, óbvio, a esse fim. Foi composto 71 anos antes do desastre e quando
este ocorreu, ela já havia morrido há anos. A compositora inspirou-se na visão
do patriarca bíblico Jacó, em Betel, que em sonho “viu” uma escada que
alcançava o céu, em cujos degraus anjos subiam e desciam, conforme relatado no
capítulo 28 do livro de Gênesis, no Velho Testamento.
Por que Hartley
escolheu justamente essa melodia, e não outra qualquer (reitero a pergunta),
religiosa ou não, para marcar a derradeira performance musical da sua vida,
minutos antes de ser tragado pelo mar e morrer? Fosse outra a música escolhida,
a composição de Sarah (embora, insisto, seja belíssima) seria tão conhecida
como é? Dificilmente. Ouso, até, afirmar que não! Li, dia desses, no “Boston
Musical Herald”, depoimento de Lowell Mason, sobre as circunstâncias que o levaram
a compor os acordes do hino: “Uma noite, algum tempo depois de me deitar,
ficando acordado no escuro, com os olhos bem abertos, por meio da quietude da
casa, a melodia veio a mim. Então, ao amanhecer, escrevi as notas da canção”.
Notaram quantas circunstâncias diferentes, separadas, umas das outras, por
várias décadas, se juntaram para perpetuar esse hino e seus autores na memória
coletiva?
Já virou tradição, por
exemplo, entre os turistas cristãos (e não importa de que denominação) que
visitam o Oriente Médio, cantarem “Mais pero quero estar” sempre que chegam à
antiga Betel, hoje batizada como Bira e localizada em território da Jordânia.
Estariam eles evocando a fonte de inspiração desse hino, ou seja, o sonho do
patriarca Jacó, ou pensam, quando agem dessa forma, no naufrágio do Titanic?
Sabe-se lá!!! Para mim, os turistas, ao cumprirem essa tradição, pensam nas
duas coisas ao mesmo tempo e mantêm viva a memória de Sarah Flower Adams, que
faleceu muito jovem, em 1848, aos 43 anos de idade e de seu parceiro Lowell
Mason, que teve vida longa, de 82 anos.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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