Catarse de multidões
solitárias
Pedro
J. Bondaczuk
A telenovela é um
fenômeno nacional que merece cuidadoso estudo. Tornou-se, há já bom tempo,
produto de exportação brasileiro para cerca de meia centena de países, muitos
dos quais conhecem nossos costumes e procedimentos (ou estereótipos deles)
somente por esse meio. Em apenas meio século, o gênero conquistou um público
cativo, fiel, apaixonado, distribuído por todas as faixas etárias e classes
sociais, constituindo-se no maior fator de padronização cultural deste país de dimensões
continentais, com tantas e profundas diferenças.
As novelas ditam moda, padronizam
modos de se expressar e de se comportar, influenciando, diretamente, para o bem
e para o mal, comunidades inteiras dos grotões mais remotos e atrasados do País, que não faz muito estavam ainda no século
XIX, em termos de tradições, e que são trazidas, subitamente, à tal da
“modernidade”, embora nem sempre no seu aspecto positivo e desejável. O gênero
passou por muitas mudanças ao longo do tempo, incorporando avanços tecnológicos
que lhe deram maior dinamismo, além de mais verossimilhança às histórias
narradas.
Antes de 1964, ano
geralmente tomado como referencial, a telenovela já existia, mas na forma de
teleteatro. Os enredos eram diretos, e não segmentados em mais de uma centena
de capítulos, como agora. Eram apresentados na íntegra, em um único dia. Não
contava, como hoje, com redatores específicos. Seus textos eram adaptações de
peças teatrais ou de romances de escritores famosos, nacionais e
internacionais. Foi apenas na década de 60 do século passado, com “O direito de
nascer”, que o gênero, já com formato parecido com o atual, começou a se impor,
a ganhar vida autônoma, a criar sua própria linguagem, e a abrir espaço para
redatores específicos.
Desde os mais remotos
tempos, alguns séculos antes da criação deste fascinante (e viciante) veículo
de comunicação de massas, que é a televisão, as pessoas sentiam irresistível
necessidade de fuga da realidade, dura e maçante, do cotidiano. No século
XVIII, por exemplo, a diversão predileta das elites era a leitura, em saraus
literários, de romances burgueses, que se constituíam na grande novidade de
então, em termos de análise de costumes e comportamentos nas grandes cidades da
época.
No século XIX, esse
tipo de literatura sofisticou-se, porém popularizou-se. Os que exploravam
comercialmente essas produções decidiram criar suspense em torno das histórias,
publicando-as em capítulos, para sustentar o interesse dos consumidores, em
folhetins encartados em jornais, a princípio semanalmente e, na sequência, com
periodicidade diária. Esse tipo de literatura, utilizando esse meio de difusão,
invadiu os primeiros anos do século XX e tornou-se a diversão predileta de
nossos avós, até a década de 30, quando do advento e da rápida popularização do
rádio.
A pergunta que os
comunicadores fazem, com freqüência, que comporta muitas respostas, sem que
haja consenso, é: por que o gênero novela polariza tanto as pessoas? Quais os
componentes psicológicos que envolve? Teria o objetivo de meramente fazer o
tempo passar de uma maneira mais amena e despreocupada? Há muita controvérsia a
esse propósito. Para o pensador francês, Edgar Morin, as telenovelas
apresentam, aos seus “consumidores”, uma “concepção lúdica da vida”. Esta é
apresentada como uma espécie de jogo de perde e ganha, como suave e inocente
brincadeira (algo muito distante da realidade nua e crua). A novela, na
concepção de Morin, “abriria o infinito do cosmo da realidade e das galáxias
imaginárias” aos seus fieis apreciadores.
Se observarmos a
telenovela com olhar crítico, concluiremos que todas têm uma raiz comum, uma
espécie de fórmula fixa em seus enredos. Contam com tramas, personagens e
cenários triviais, que são parecidos, se não iguais, aos da vida de cada um de
nós. São apresentados como se fossem uma “realidade”, um fato que estaria
acontecendo e do qual fossemos meramente testemunhas. Isso permite às pessoas,
massacradas no dia a dia por responsabilidades familiares, profissionais e
sociais, a empreenderem momentânea fuga de suas aflições. A descobrirem, ou
reencontrarem, os tantos paraísos que cada um de nós idealiza (com maneiras
próprias, de acordo com a estrutura psicológica de cada um).
O telespectador
encontra nas novelas uma “outra vida”, mais dinâmica do que a sua, onde as
transformações não ocorrem em intervalos de anos, mas de dias, quando não de
segundos. É induzido a imaginar um convívio social envolvido em mistérios, é
verdade, mas também com suspense e, principalmente, com magia, em que tudo se
torna possível. Em que, a despeito de conflitos e paixões, o amor “sempre”
acaba prevalecendo e tudo, invariavelmente tudo, termina bem: os maus são
punidos por suas maldades e os bons acabam reconhecidos e premiados. Isto é, o
telespectador é induzido a imaginar situações e conseqüências quase sempre
contrárias à realidade.
Na vida real acontece,
salvo raríssimas exceções, exatamente o oposto dos enredos. Esses componentes
de fantasia aliviam, subconscientemente, as angústias e tensões do cotidiano. O
telespectador projeta nos personagens seus próprios conflitos e desejos. O
antipático, por exemplo, que massacra o herói da história, mas que termina
invariavelmente punido nos derradeiros capítulos, ganha o aspecto subconsciente
do chefe de repartição, cujas ações de liderança são mal interpretadas. O
“consumidor” de novelas vê, nele, subconscientemente, a figura do opressor que
o angustia: o professor durão, o chefe canalha, o pai ditatorial etc. etc. etc.
Com o desenrolar dos
capítulos, e dependendo da história, o telespectador passa a viver, pelo menos
naquela uma hora diária em que a novela que assiste vai ao ar, a vida romanesca
dos personagens. Alguns, inclusive, chegam a “viver” com maior intensidade
essas fantasias do que a própria vida real, via de regra descolorida e trivial.
Na minha concepção, esta é a fórmula padrão do gênero, que funciona, prende e
apaixona: amor inicialmente não correspondido, sofrimento e final feliz.
Para David Riesman, a
identidade popular com as novelas se deve à existência das “multidões
solitárias”, sobretudo nas grandes cidades, onde as pessoas moram próximas das
outras por anos, às vezes por décadas, e mal se conhecem. Quando muito,
limitam-se a se cumprimentar, distraídas, quando cruzam umas com as outras. Hoje
sabemos, por exemplo, quase tudo sobre políticos, artistas e jogadores de
futebol famosos, mas não sabemos praticamente nada do nosso vizinho de muro. É,
como diz o poeta Carlos Drummond de Andrade, nestes expressivos versos do poema
“A bruxa”:
“Nesta cidade do Rio
de dois milhões de
habitantes,
estou sozinho no
quarto.
Estou sozinho na
América”
Esse é o sentimento da
maioria: o de profunda e aterradora solidão. E a telenovela funciona como elo
para unir esses milhares e milhares de solitários, para galvanizar sua atenção,
para tiranizá-los, hipnotizá-los, quem sabe, mas para induzi-los a fazer uma
espécie de catarse diária, projetando seus sonhos, angústias, desejos, aflições
etc.etc.etc. em personagens que só existem no plano da ficção.
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