Trilha sonora
O poeta português, Fernando
Pessoa, em famoso ensaio sobre arte, encontrado no tão falado baú de seus
textos inéditos, aberto, e fartamente explorado após sua morte, escreveu: “Para
os sentimentos vagos, que não comportam definição, existe uma arte – a música
–, cujo fim é sugerir sem determinar. Para os sentimentos perfeitamente
definidos, de tal modo que é difícil a emoção neles, existe a prosa”. E não
estava errado, com certeza.
Todos nós temos, em maior ou menor
grau, determinadas canções que nos evocam, sempre que executadas, momentos
marcantes, bons ou maus, da vida. Elas formam, em conjunto, uma espécie de
“trilha sonora” desses acontecimentos, como nos filmes, com a diferença de que
não se trata de ficção, mas da realidade nua e crua, mesmo que a fantasiemos,
na medida do nosso temperamento e da nossa personalidade.
Mais adiante, Fernando Pessoa
acrescentou a propósito: “Só a música e a literatura permanecem”. Optei pela
segunda, por não ter o mínimo talento para ser músico. Nem para compositor e
muito menos para intérprete. Tocar, não toco nenhum instrumento, nem os de
percussão. Cantar? Valha-me Deus! Haja ouvido e paciência para os que tiverem a
desdita de me ouvir!
Mas, como todo mundo, também
tenho a minha “trilha sonora”. Ela variou, destaque-se, ao longo do tempo, ao
sabor da apuração do meu gosto estético e do acréscimo de cultura que a leitura
me proporcionou. A primeira música que evoco, sempre com enorme saudade (e cujo
título e autor desconheço), por exemplo, marcou o momento em que deixei, para
sempre, a minha terra natal, o Rio Grande do Sul. Vim para a Eldorado de todos
os brasileiros, São Paulo, em busca de oportunidades que ali (pelo menos era o
que meus pais pensavam), jamais teria. Eu contava, na ocasião, com cinco anos
de idade, na véspera de completar seis.
Cantarolo, neste momento, um
trecho dessa canção (desafinado, como sempre, mas com o consolo de saber, como
disse um dia João Gilberto, que “no Brasil até os canarinhos desafinam”), que
não me saía do ouvido desde o embarque, na segunda classe de um trem, na
estação de Santa Rosa, até quase a hora do desembarque na Estação da Luz:
“Peguei o Ita no Norte
pra vir pro Rio morar,
adeus meu pai, minha mãe,
adeus Belém do Pará...”
Como se vê, pelo menos no que diz
respeito à letra, a tradicional cançoneta popular nada tinha a ver com a
situação que eu vivia naquele momento. Minha viagem, por exemplo, não era de
navio. E muito menos era no da famosa linha que fazia o trajeto da Amazônia à então
Capital Federal, duas vezes por semana, naqueles idos de 1948. Não estava me
despedindo de Belém e nem ia para o Rio morar. Por que, então, foi essa, e não
outra canção qualquer que marcou aquele momento? Não me perguntem! Jamais
saberei responder. Mas foi ela.
Claro que a minha “trilha sonora” não se restringe apenas
a essa música. Tem, na verdade, talvez mais de uma centena de outras,
praticamente à razão de duas ou mais por ano da minha vida. E nem são somente músicas populares.
Composições de Chopin, de Wagner, de Bach, de Liszt, de Rachmaninoff, de
Brahms, de Mozart, de Tchaikowski, de Jacques Offenbach (principalmente a
“Barcarola”, da série “Les contes d”Hoffmann”) e, em especial de Beethoven,
ilustram minhas mais preciosas lembranças, evocadas com incontida emoção
(evocação que não raro me leva às lágrimas), sempre que as ouço.
Na adolescência, por exemplo, sucessos dos chamados “anos
dourados”, como “Jambalaya”, com Brenda Lee; “Love letters in the sand” e “Only
you”, com os The Platers; “Minha namorada”, com Carlos Lyra, “Noite do meu
bem”, de Dolores Duran, com Maysa Matarazzo e “Hino ao amor”, tanto com a Edith
Piaff, no original em francês, como na versão que vendeu toneladas de discos,
na voz de Wilma Bentivegna, entre outras, marcaram instantes memoráveis. E
estes variaram demais em sua natureza.
Foram conquistas de novas namoradas, por exemplo. Também
foram azedas e traumáticas rupturas de namoros. Houve reencontros com parentes
ou amigos. E foram outros tantos e tantos e tantos episódios, aparentemente
banais, mas para mim maiúsculos e dignos de recordação, de uma existência
sofrida, batalhada, não raro dramática que, todavia, no cômputo dos prós e dos
contras, tem sido, na verdade, feliz...
O poeta Mário Quintana, cuja poesia, sem perder a
profundidade e a emoção, tem como principal característica uma fina e
inteligente ironia e um enorme senso de humor, também escreveu a respeito. Foi
este poema minimalista, intitulado “Meu Trecho Predileto”, e que diz:
“O que mais me
comove, em música,
são essas notas
soltas
--- pobres notas
únicas –
que do teclado
arranca/o afinador de pianos...”.
E você, caro leitor, qual é a sua trilha sonora? Qual a
música que lhe evoca os momentos mais marcantes da vida? Um samba? Um clássico?
Um forró? Um rock? Composições em estilo brega, com Waldick Soriano, Odair José
ou Lindomar Castilho? Ou são as notas, soltas e únicas, do afinador de pianos?
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