A alma da Literatura
Pedro
J. Bondaczuk
A “alma” da Literatura,
o imã que atrai nossa atenção de leitores para determinado texto e que faz com
que ele, além de nos induzir à reflexão sobre seu conteúdo, nos delicie com sua
forma, é algo bastante sutil, que o escritor italiano, Umberto Eco, chamou de
“fato estético”. Ele referia-se, ao cunhar essa expressão, especificamente à
poesia. No entanto, o princípio pode (e a meu ver, deve) ser estendido
igualmente à prosa. Quando um texto é literário e quando não é? Entendo que o
seja quando reúne, simultaneamente, objetividade, conteúdo e beleza. Além da
correção, sem dúvida. Qualquer desses fatores que falte faz do texto tudo,
menos de Literatura. Um bilhete, bem redigido, por exemplo, tende a ser
objetivo, pode até soar belo, mas falta-lhe conteúdo para o leitor que não seja
a pessoa a que seja endereçado. Não é, portanto, “literário”. Não contém o
“fato estético”.
E o que vem a ser esse
fator? Bem, na verdade não há uma definição exata e rigorosa dele, embora,
paradoxalmente, seja perfeitamente identificável em um texto. Umberto Eco assim se referiu a ele: “O fato
estético é algo tão evidente, imediato e indefinido quanto o amor, o gosto da
fruta, a água. Sentimos a poesia como sentimos a presença de uma mulher, uma
montanha ou uma baía. Se ela é sentida de imediato, por que diluí-la em outras
palavras, que certamente serão mais frágeis do que nossos sentimentos?” Sim,
paciente leitor, por que?
Para um texto adquirir
essa característica de excelência, para conter o tal do fato estético e ter,
simultaneamente, objetividade, conteúdo e beleza, a condição primordial,
primária, elementar (“sine qua non” como diriam os romanos), é a de que ele
seja rigorosamente correto em todos os aspectos, quer na grafia, quer na
semântica e quer em tudo o que diga respeito às “leis do idioma” (sua
gramática). Uma escrita relapsa, eivada de erros, pelo meu critério pessoal,
jamais poderá ser considerada “literária”. Não tenho dúvidas em afirmar que não
é.
Umberto Eco, por sua
vez, chama a atenção para o fato de que a poesia, ao contrário da prosa, ser
passiva de diferentes interpretações, sem que haja a mínima necessidade de
modificação no texto, a cada vez que for lida. Escreve: “Eu definiria o efeito
poético como a capacidade que um texto oferece de continuar a gerar diferentes
leituras, sem nunca se consumir de todo”. O bom poema, portanto, comporta
infindáveis interpretações. O leitor torna-se, automaticamente, uma espécie de
co-autor do texto poético. E o poeta francês Paul Claudel vai mais longe.
Afirma que a interpretação do conteúdo de determinada poesia tem a ver não
apenas com a forma como ela é escrita. “O poema não é feito dessas letras que
eu espeto como pregos, mas do branco que fica no papel”. Ou seja, é todo um
conjunto.
Então é esta a grande
diferença entre a poesia e a prosa? Para Jorge Luís Borges, não! O escritor
argentino, meu eterno guru literário, sugeriu que o que diferencia,
principalmente, os dois gêneros é a “expectativa” que o leitor tem antes de
iniciar a leitura de uma e de outra. E o que ele espera encontrar? Na poesia é
a “intensidade” que, no entanto, não tolerará na prosa. Nesta última, sua
expectativa reside basicamente na objetividade (além, claro, de esperar também
encontrar conteúdo e beleza). Borges escreveu ainda, no livro “História da Eternidade”,
referindo-se aos poetas: “Creio que os escritores somos amanuenses de algo
secreto, que se pode chamar, segundo a tradição homérica, de ‘musa’; segundo a
tradição hebréia, ‘ruach’, o ‘espírito’; ou segundo a fria mitologia moderna,
‘inconsciente’ ou ‘subconsciente’; ou segundo a bela expressão do grande poeta
irlandês William Buttler Yeats, a
‘grande memória’.
Para encerrar estas
descompromissadas reflexões de hoje, peço licença para transcrever estes belos
versos de Mário Quintana, intitulados “Como pássaros”, que caracterizam a
caráter a mencionada “co-autoria” de quem lê um poema e como ela se dá:
“Os poemas são pássaros
que chegam não se sabe
de onde e pousam no
livro que lês.
Quando fechas o livro,
eles alçam vôo como de
um alçapão.
Eles não têm pouso nem
porto,
alimentam-se um instante
em cada par de mãos e
partem.
E olhas, então, essas tuas
mãos vazias, no
maravilhado espanto de
saberes que o alimento
deles já estava em ti”.
E não tem razão o
inspirado poeta gaúcho?! Claro que sim!!!
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