Homens
múltiplos
Pedro J. Bondaczuk
O escritor espanhol Antônio Gala, em entrevista
publicada pelo jornal "O Globo", em 11 de julho de 1993, disse que
"o homem tem compartimentos estanques em sua alma: um quarto dedicado ao
trabalho, outro à casa, outro a seus amigos, outro ao amor ou às suas
aflições". Somos, portanto, múltiplos, com comportamentos e reações
diferentes, adequados (ou pelo menos adaptados) a cada ocasião. Daí não ser
estranhável a mudança de estilo de um intelectual que lide com textos, seja ele
literato ou jornalista, não importa.
Fernando Pessoa, por exemplo, levou às últimas
conseqüências essa multiplicidade, com seus heterônimos. O escritor português
afirmou o seguinte a respeito: "Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com
inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única
anterior realidade que não está em nenhum e está em todas".
O incrível, nesse magnífico intelectual, é que para
cada pseudônimo que adotava, para divulgar suas idéias, criava uma personalidade
própria. Fazia surgir outra pessoa. Alterava, inclusive, o estilo, de sorte
que, se não tivesse vindo a público que se tratava do mesmo indivíduo, leitor
algum jamais iria desconfiar.
Em outro texto, tenta explicar o que o levou a agir
assim. "Sendo nós portugueses, convém saber o que é que somos.
Adaptabilidade, que no mental dá a instabilidade, e portanto a diversificação
do indivíduo dentro de si. O bom português é várias pessoas (...) Nunca me
sinto tão portuguesmente eu como quando me sinto diferente de mim – Alberto
Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Fernando Pessoa e quantos mais
haja".
Eu, embora não sendo de descendência lusitana (sou filho
de russos), e não tendo sequer ínfima migalha do talento de Pessoa (antes
tivesse), também me sinto multidão. Vários Pedros coabitam em minha mente.
Elaboram os meus textos, variando de estilos e colocações. Analisam a vida e
meus companheiros de jornada nesta curta aventura do existir, com visões e
enfoques contraditórios. São um poço de contradições. Cada um desses Pedros
disputa parcela maior de espaço, de prestígio, de renome, buscando o centro do
palco da vida. Uns são vaidosos, outros inseguros, outros alienados e assim por
diante.
Daí, inclusive, esta guinada em minha carreira, que
talvez me seja prejudicial. Um desses múltiplos, possivelmente o mais
desequilibrado deles, venceu a competição. Aposentei (por quanto tempo não sei)
o comentarista político, o jornalista azedo e mal-humorado, inconformado com
mazelas, loucuras e corrupções que freqüentam as manchetes da imprensa, para
investir no trivial, no banal, no não noticiável, no lado mais ameno da vida.
É possível que esta faceta não interesse a ninguém.
Pode ser que os leitores, que generosamente me suportaram por décadas, deixem
de me prestigiar. Mas este outro Pedro é um malabarista. Está acostumado a
riscos e disposto a corrê-los. É habituado a fazer piruetas na corda-bamba.
Decidi escrever crônicas... O Pedro articulista
deixou o palco central em 1998. O Pedro cronista assumiu o seu lugar, esperando
contar com a mesma paciência, generosidade, complacência e até cumplicidade dos
leitores que seu antecessor contou.
Terei talento para encarar um gênero tão complexo? Afinal, não sou
nenhum Rubem Braga ou algo que o valha. Pablo Picasso disse: "Nasço a cada
dia". Também me sinto assim. E quero que o meu texto reflita esse
deslumbramento diário, com um mundo diariamente novo para mim, como se
estivesse entrando em contato com ele sempre pela primeira vez.
Foi um risco muito grande realizar essa mudança tão
dramática, numa fase complicada da minha vida em que eu já era, digamos, um
homem "um pouco maduro demais". Imaginem agora, com 18 anos a mais.
Mas, como escreveu Vincent Van Gogh em carta a seu irmão Theo, quando não havia
conseguido vender um único dos seus quadros (em vida foi um fracasso):
"...Quero chegar ao ponto em que digam da minha obra: este homem sente
profundamente, e este homem sente delicadamente". Esta, pelo menos, é a
intenção do Mister Peter Hyde que existe em mim. Não posso prever, todavia, o
que fará o malvado Doutor Peter Jekyll.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk..
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