Wednesday, March 08, 2017

Homens múltiplos



Pedro J. Bondaczuk


O escritor espanhol Antônio Gala, em entrevista publicada pelo jornal "O Globo", em 11 de julho de 1993, disse que "o homem tem compartimentos estanques em sua alma: um quarto dedicado ao trabalho, outro à casa, outro a seus amigos, outro ao amor ou às suas aflições". Somos, portanto, múltiplos, com comportamentos e reações diferentes, adequados (ou pelo menos adaptados) a cada ocasião. Daí não ser estranhável a mudança de estilo de um intelectual que lide com textos, seja ele literato ou jornalista, não importa.

Fernando Pessoa, por exemplo, levou às últimas conseqüências essa multiplicidade, com seus heterônimos. O escritor português afirmou o seguinte a respeito: "Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhum e está em todas".

O incrível, nesse magnífico intelectual, é que para cada pseudônimo que adotava, para divulgar suas idéias, criava uma personalidade própria. Fazia surgir outra pessoa. Alterava, inclusive, o estilo, de sorte que, se não tivesse vindo a público que se tratava do mesmo indivíduo, leitor algum jamais iria desconfiar.

Em outro texto, tenta explicar o que o levou a agir assim. "Sendo nós portugueses, convém saber o que é que somos. Adaptabilidade, que no mental dá a instabilidade, e portanto a diversificação do indivíduo dentro de si. O bom português é várias pessoas (...) Nunca me sinto tão portuguesmente eu como quando me sinto diferente de mim – Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Fernando Pessoa e quantos mais haja".

Eu, embora não sendo de descendência lusitana (sou filho de russos), e não tendo sequer ínfima migalha do talento de Pessoa (antes tivesse), também me sinto multidão. Vários Pedros coabitam em minha mente. Elaboram os meus textos, variando de estilos e colocações. Analisam a vida e meus companheiros de jornada nesta curta aventura do existir, com visões e enfoques contraditórios. São um poço de contradições. Cada um desses Pedros disputa parcela maior de espaço, de prestígio, de renome, buscando o centro do palco da vida. Uns são vaidosos, outros inseguros, outros alienados e assim por diante.

Daí, inclusive, esta guinada em minha carreira, que talvez me seja prejudicial. Um desses múltiplos, possivelmente o mais desequilibrado deles, venceu a competição. Aposentei (por quanto tempo não sei) o comentarista político, o jornalista azedo e mal-humorado, inconformado com mazelas, loucuras e corrupções que freqüentam as manchetes da imprensa, para investir no trivial, no banal, no não noticiável, no lado mais ameno da vida.

É possível que esta faceta não interesse a ninguém. Pode ser que os leitores, que generosamente me suportaram por décadas, deixem de me prestigiar. Mas este outro Pedro é um malabarista. Está acostumado a riscos e disposto a corrê-los. É habituado a fazer piruetas na corda-bamba.

Decidi escrever crônicas... O Pedro articulista deixou o palco central em 1998. O Pedro cronista assumiu o seu lugar, esperando contar com a mesma paciência, generosidade, complacência e até cumplicidade dos leitores que seu antecessor contou.  Terei talento para encarar um gênero tão complexo? Afinal, não sou nenhum Rubem Braga ou algo que o valha. Pablo Picasso disse: "Nasço a cada dia". Também me sinto assim. E quero que o meu texto reflita esse deslumbramento diário, com um mundo diariamente novo para mim, como se estivesse entrando em contato com ele sempre pela primeira vez.


Foi um risco muito grande realizar essa mudança tão dramática, numa fase complicada da minha vida em que eu já era, digamos, um homem "um pouco maduro demais". Imaginem agora, com 18 anos a mais. Mas, como escreveu Vincent Van Gogh em carta a seu irmão Theo, quando não havia conseguido vender um único dos seus quadros (em vida foi um fracasso): "...Quero chegar ao ponto em que digam da minha obra: este homem sente profundamente, e este homem sente delicadamente". Esta, pelo menos, é a intenção do Mister Peter Hyde que existe em mim. Não posso prever, todavia, o que fará o malvado Doutor Peter Jekyll.

Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk..

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