Homem
inacreditável
Pedro J.
Bondaczuk
O
verdadeiro sonhador, o idealista, o que tem obsessão por justiça, igualdade,
paz e harmonia, não é o que se limita a sonhar, sem nada fazer para concretizar
seus sonhos. Pelo contrário, é o que vai à luta e, contra tudo e contra todos,
dedica a vida à construção desse ideal. E se fracassar? Não, ele nunca
fracassa!
Seu
empenho resulta, invariavelmente, em algum tipo de progresso. E essa tocha
sagrada da liberdade e justiça que conduz será empunhada por outro sonhador,
que a passará a outro e assim sucessivamente, promovendo contínua evolução dos
povos.
Quem
se limita a sonhar, sem nada fazer, é omisso. Espera que outros executem a
tarefa que lhe compete. A poetisa Fabiana Bórgia define, com precisão, o perfil
do verdadeiro sonhador, nestes versos do poema “Pedaços juntados”:
“O
sonhador
tem
a alma no céu
e
os pés no chão”.
É
esse o tipo de pessoa de que a humanidade precisa para evoluir. Ou seja, com a
alma no céu, mas com os pés bem fincados no solo da realidade.
Há quase 70 anos, em 30 de janeiro de 1948, o mundo
recebeu, chocado, a notícia do assassinato de um dos homens mais notáveis que
já passaram pela Terra: Mohandas Karamanchand Gandhi, conhecido como “Mahatma”,
palavra que significa “grande alma”.
O irônico disso é o fato do apóstolo da
não-violência haver morrido de forma tão violenta: abatido com um tiro pelo
jornalista Nathuram Godse. Na oportunidade, Jawaharlal Nehru, que se tornaria
primeiro-ministro da Índia, ao anunciar pelo rádio a morte do companheiro de
lutas e, sobretudo, amigo (passou a adotar Gandhi como sobrenome de família),
disse: “A luz apagou-se de nossa vida e há treva por toda a parte”. E havia...
Esse foi um evento que me marcou para sempre. Eu
tinha, na ocasião, apenas cinco anos de idade (que havia completado dez dias
antes, em 20 de janeiro) e meu pai já me havia ensinado a ler, em uma Bíblia que guardo,
ainda hoje, como uma das maiores, se não a maior relíquia que possuo. Apesar de
ser tão criança, fixei na memória aquele dia especial e me lembro nitidamente
de tudo o que aconteceu, como se houvesse ocorrido há alguns minutos apenas.
Por que? Jamais soube explicar.
Soube do infausto acontecimento ouvindo a conversa
do meu pai com um senhor negro, com o qual ele tinha enorme amizade. Essa
pessoa visitava a nossa casa com freqüência, diria que semanalmente, e por um
motivo bastante peculiar: para praticar o idioma russo. Sim, ele falava essa
língua tão complicada, que aprendera em Moscou, onde havia estudado! De volta
ao Brasil, temia esquecer essa maneira insólita de falar, que para nós,
brasileiros, parece tão rude e bárbara, mas que, na verdade, é sonora e bela.
Esse amigo da família trocava com o meu pai livros e
revistas russos. E nos seus encontros, raramente os dois falavam outra língua
que não essa. Meu conhecimento desse idioma é ínfimo, mas na oportunidade, não
era tão ruim como é hoje. O tempo e a falta de prática fizeram com que me
esquecesse quase que por completo do russo.
Lembro-me que meu pai estava bastante triste ao dar
a notícia, que ouvira horas antes no rádio, do assassinato de Gandhi. Uma frase
dele, em particular, ficou retida em minha memória de criança de cinco anos na
ocasião: “Mais uma vez, a força bruta venceu a razão”. Claro que, na
oportunidade, não apreendi o significado dessa declaração. E nem poderia. Com
aquela idade, o que eu entendia da vida?!
Hoje, sei perfeitamente o que meu pai quis dizer e
lamento profundamente que a violência ainda prepondere sobre a racionalidade.
Quando do assassinato de Martin Luther King, muitos anos depois, quando eu já
era jornalista e comentarista de política internacional, lembrei-me dessa
frase, dita pelo meu pai. E finalizei com ela o artigo que escrevi na
oportunidade, sobre a morte desse não menos notável líder negro.
Mas a manifestação mais enfática a respeito do
assassinato de Gandhi foi de Albert Einstein, que declarou: “As futuras
gerações talvez não acreditarão que uma pessoa assim andou em carne e osso pela
Terra”. Tenho-a, comigo, em meu arquivo, extraída de uma entrevista que o
físico nuclear concedeu à imprensa na ocasião.
E não é o que acontece? Ouço, amiúde, jovens
afirmarem que há muito exagero na avaliação de Gandhi. Digo-lhes,
invariavelmente, que estão enganados. O mártir da independência indiana foi
mais, muito mais do que a imprensa falou dele. Se houve exagero, portanto, ao
avaliarem-se os seus méritos, este foi para menos, muito menos. Homens com
tamanha envergadura moral, lucidez e grandeza, infelizmente, são incomuns e,
sobretudo, inacreditáveis. Mas existem (felizmente)!
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