Fazer
e refazer
Pedro J. Bondaczuk
O homem tenta, de todas as formas imagináveis,
vencer a morte. Não a física, que por uma fatalidade biológica, é a única
certeza que tem neste mundo de aparências e mistérios. O que procura é algum
tipo de sobrevivência. Não lhe passa pela cabeça que ao cabo de tantos
sacrifícios e dores, do nascimento à velhice (quando consegue chegar a ela),
tudo termine, como diz a letra do samba de Billy Blanco (imortalizado por Dóris
Monteiro), "com terra por cima e na horizontal".
Há os que dão como certa outra existência,
imaterial, incorpórea, "energética", num plano exclusivamente
espiritual, em um hipotético Paraíso, crença abraçada (com poucas variações)
por diversas seitas. Tomara que estejam certos, mas... Outros crêem que a única
forma de sobreviver é através das obras, não importando sua natureza ou
destinação. E é um interminável fazer, destruir e refazer, quando se trata de
realizações materiais. Há, ainda, os descrentes de outra vida, que tentam
aproveitar ao máximo seu tempo com a satisfação dos sentidos: comendo bem,
amando muito, brincando o quanto possível. Enfim, se divertindo.
Como a fábula de La Fontaine, da Cigarra e da
Formiga, assim são os homens. Enquanto uns trabalham, construindo templos,
cidades, tumbas e monumentos, outros "cantam", gozando as delícias do
ócio e do fruto do trabalho alheio. Enquanto uns criam, outros aproveitam e
esbanjam. Qual o valor das obras, além daquele óbvio, utilitário, de uso
imediato? São fontes (ou pelo menos oportunidades) de perpetuidade da memória,
ou não passam de frustradas tentativas para evitar o esquecimento "post-mortem?"
Ninguém é capaz de responder com segurança essas
questões. Os pioneiros da civilização, os que fizeram descobertas marcantes,
práticas, que facilitaram ou até mesmo garantiram a sobrevivência humana, são
absolutamente anônimos. Sobretudo os que viveram antes da criação da escrita, da
invenção dos primeiros alfabetos. Quanto tempo passou até que a espécie humana
deixasse de ser ágrafa e que isso ocorresse? Mil anos? Cinco mil anos?
Cinquenta mil anos? Cem mil anos? Mais? Menos? Ninguém sabe e certamente jamais
saberá. Como saber se não há o mais reles registro a propósito? Não há como!!
Especulemos. Quem descobriu a roda? Ou a maneira de
produzir o fogo? Quem foi o inventor, justamente, do primeiro alfabeto que
impulsionou o progresso e a civilização? Ou da escala musical? Ou dos números?
Ou dos princípios básicos da matemática? Estes são alguns dos fundamentos da
civilização que foram criados por alguém. Mas por quem? Os pioneiros, os
desbravadores, as mentes iluminadas que deram esses decisivos passos para que o
homem saísse das cavernas, deixasse de ser fera e se tornasse a criatura nobre
e inteligente que é (para o bem e para o mal), não contam com o reconhecimento
do que legaram à espécie. Ninguém sabe quem foram, embora, óbvio, tenham existido.
Por que?
No plano intelectual, o valor das obras, para perpetuar a
memória dos seus criadores, é ainda mais contestável e incerto. Livros
maravilhosos, de reflexão e arte, de sabedoria e estilo, de precisão e beleza
foram destruídos nas agressões de povos bárbaros, a outros com alto grau de
civilização, com a perda total ou parcial de magníficas bibliotecas. Ao longo
dos séculos, foram inúmeras as vezes em que a força bruta prevaleceu sobre a
razão, resultando em irrecuperável retrocesso espiritual e até material. Feras
embrutecidas e furiosas eliminaram todos os vestígios da reflexão de
esplêndidos pensadores, reinstalando a barbárie. E foram inúmeros os casos
desse tipo registrados pela história. Fora os que ocorreram e nem registro
tiveram (provavelmente em muitíssimo maior número), destruídos pelos inimigos
da civilização.
É possível a um escritor dos dias atuais ser
original, em se levando em conta que milhões de livros, de todos os gêneros e
assuntos imagináveis, são publicados no mundo, anualmente? Quantos desses
intelectuais vão ser lembrados dentro de dois, cinco, dez, cinqüenta ou cem
anos? Ou em um, dois, cinco ou dez séculos? Ou em três, quatro, seis ou dez
milênios, como Homero, Píndaro, Heráclito, Platão ou Aristóteles são? Os nomes
citados, e outros tantos, considerados "clássicos" do pensamento
mundial, sobrevivem, em grande parte, na memória das gerações, não apenas por
causa da relevância de suas obras, mas porque outros intelectuais sempre se
nutriram e se nutrem de suas idéias, para fundamentar as próprias. Paul Valéry
observa: "Nada é mais original, nada é mais você mesmo do que se nutrir
dos outros". Trata-se de um processo de "simbiose" intelectual,
de "parasitismo" em que as duas partes lucram.
Há casos, não tão raros como se pensa, em que duas
obras, escritas em períodos distintos, sem que a posterior plagie a anterior e
sem que o autor da segunda sequer conheça, nem por referência, o da primeira,
que guardam semelhanças que parecem, de fato, se tratar de plágio. E não são.
Como explicar que dois intelectuais, separados no tempo e no espaço, com
personalidades e formações distintas, raciocinem de formas tão iguais? Valéry
escreve a respeito: "Existem obras cuja relação com outras, anteriores, é
tão intrincada que nos deixa confusos, a ponto de atribuí-las à intervenção
direta dos deuses". Ou do acaso? Ou da coincidência? Ou do que quer que
seja?
Minha esperança de sobreviver ao tempo, à morte e ao
esquecimento está num outro procedimento, mencionado por Paul Valéry: "O
valor das obras de um homem não está nas obras, mas em seu desenvolvimento
pelas mãos de outros, em outras circunstâncias". Como, aliás, tenho feito
em relação a milhares de escritores que cito (a maioria intelectuais já
mortos), cujos livros comento, cujas idéias utilizo para fundamentar e dar
credibilidade às minhas, sem jamais me esquecer de lhes dar o devido crédito.
Conto com idêntica generosidade dos leitores das gerações futuras. Espero que,
assim, me garantam, pelo menos, essa fugaz "imortalidade", a única ao
alcance do homem. Ou não, já que a Terra, o Sol, a Via Láctea, todas as
galáxias e tudo o que há no universo, ou em multiversos caso estes existam, têm
tempo contado, mesmo que este seja medido em bilhões de anos ou mais.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
No comments:
Post a Comment