Patrimônio do homem
Pedro J. Bondaczuk
A
memória é importante, não nego, mas somente como balizadora de atos. É através
dela que uma geração transmite às demais suas experiências e descobertas,
impedindo que a espécie retroaja à barbárie. A esse processo de preservação
damos o nome de “educação”. Foi para preservar a memória coletiva, para impedir
que as grandes idéias, ações e exemplos se perdessem no esquecimento, que se
inventou a escrita.
O
passado tem, claro, a sua importância, já que a nossa vida é uma continuidade,
um todo, uma somatória de tempos. Mas só terá utilidade se recorrermos a ele
como parâmetro, como medida, como termo de comparação, para evitar que venhamos
a tropeçar nos mesmos obstáculos que nos derrubaram um dia. Ou para impedir que
cometamos os mesmos erros que nos tornaram infelizes ou frustraram algum dos
nossos projetos. Ou para prevenir-nos de decepções que sejam evitáveis. No
mais...
Ainda assim, a memória é, na definição do poeta
inglês Alexander Smith, “o verdadeiro patrimônio” do homem. “Em nada mais ele é
rico, em nada mais ele é pobre”, complementa o escritor, com o que concordo.
Todavia, a despeito da sua inegável
importância, é extremamente frágil.
Preserva pouquíssimos fatos que nos digam respeito e com a fidedignidade desejável
para que a levemos a sério.
Com
o tempo, a memória se deteriora. Distorce os acontecimentos, fantasia-os,
romanceia-os, idealiza-os. Tenho, por exemplo, o hábito de registrar, há já
muitos anos, em um diário, os principais episódios que me envolvem. Relendo
essas páginas, com o distanciamento de alguns anos, não me recordo de muitos
dos que foram narrados. É como se cada fato citado saísse de minha imaginação,
fosse uma criação literária, não passasse de um conto. Caíram no esquecimento e
só sei que ocorreram porque estão ali, descritos com detalhes, expressando a
emoção que despertaram na ocasião, em letra de forma.
Bertrand
Russell, em sua "História da Filosofia Antiga", observa: "Quando
nos lembramos, as lembranças nos ocorrem agora, e não são idênticas ao
acontecimento lembrado. Mas a lembrança nos fornece uma 'descrição' do
acontecimento passado e, para a maioria dos fins práticos, não é necessário
distinguir entre a descrição e aquilo que é descrito".
Por
isso, não costumo me fiar muito na exatidão da chamada "Literatura
Memorialística". Encaro o que é descrito como "ficção calcada em
fatos reais". A menos que se trate de diário, reproduzido na íntegra, sem
tirar e nem pôr, literalmente como foi escrito, dia por dia, não considero os
livros do gênero como documentos e muito menos confiáveis. Até a História, que
é calcada em documentos, não passa de uma grande ficção. A quase totalidade do
que narra é fruto da criatividade do escritor, a despeito da verossimilhança
que a narrativa apresente em relação aos acontecimentos relatados.
Mesmo
nos diários, é mister observar, a carga de subjetividade é muito grande. Um
mesmo fato pode ser encarado e descrito de formas diferentes, dependendo do
observador. Quando os textos são bem escritos e os episódios são interessantes,
esse é um dos tipos de literatura que mais aprecio. Mas nunca tomo a narrativa
ao pé da letra, em seu sentido literal.
Até
porque, a memória costuma nos pregar peças incríveis. Se confiarmos cegamente
nela, estaremos sujeitos a cair em ridículo, principalmente se, além de
"desmemoriados", formos também teimosos. Daí a necessidade do
historiador – que pretenda narrar acontecimentos de maneira científica, com
milimétrica exatidão –, de contar com um arquivo consistente, que registre os
principais fatos com os detalhes essenciais, para que uma realidade que deseja
preservar não seja transformada, toda ela, em mera ficção.
Nem
tudo (ou quase nada) do que "lembramos" aconteceu exatamente da
maneira que achamos. O tempo deturpa detalhes, modifica circunstâncias, suprime
ou acrescenta personagens e assim por diante, alterando pontos essenciais do
acontecimento, embora tenhamos a convicção íntima de estarmos certos em nossa
descrição. Em assuntos banais, nada disso tem muita importância. Mas quando se
trata de algo sério...
Não
devemos, pois, confiar cegamente na memória, que amiúde nos atraiçoa. E nem é
sábio viver no passado, abrindo mão das perspectivas abertas pelo presente.
Vivamos plenamente cada dia, com bom-humor e alegria, buscando sempre fazê-lo
melhor e mais feliz do que o anterior. É a melhor “receita” que conheço para
encarar o cotidiano. Nem sei se existem outras.
Claro
que não recomendo que se descartem liminarmente as boas lembranças. A bem da
verdade, nem as más. Ademais, isso sequer é possível. Ninguém induz uma
auto-amnésia, e muito menos uma que seja seletiva e que o leve a esquecer
determinados fatos, que considere ruins, e preserve apenas os agradáveis e
felizes.
Mas
não podemos fazer das lembranças uma espécie de panacéia para a felicidade. São
passado. Não voltam mais e jamais podem ser reprisadas. Se tentarmos, o
resultado, fatalmente, será o da frustração. A vida não comporta reprises.
Acho
sábia (por ser verdadeira), esta metáfora criada pelo escritor norte-americano
Austin O’Malley, que citei “n” vezes e não canso de reiterar: “A memória é uma
velha louca que joga comida fora e guarda trapos coloridos”. O alimento
(espiritual, no caso) desperdiçado, são os bons livros, os exemplos edificantes
e os relacionamentos elevados que tivemos a oportunidade de vivenciar e que
findamos por esquecer. Quanto aos trapos coloridos... Cada pessoa sabe bem
quais são os seus...
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