Wednesday, October 19, 2016

O homem humilhado

Pedro J. Bondaczuk

A história da humanidade espera, com paciência, o triunfo do homem humilhado”. Essa citação, extraída de um poema bastante conhecido do indiano Rabindranath Tagore, ganhador de um Prêmio Nobel de Literatura, apresentada, de forma até um tanto intempestiva, pelo Zito, gerou uma das maiores discussões do nosso grupo informal, que se reunia, tempos atrás, quase todas as tardes, em um bar da cidade, para “salvar o mundo”, entre goles de cerveja e tira-gostos variados (que ninguém é de ferro!) e sobre o qual escrevi (provavelmente) mais do que deveria. O que fazer? Sou assim mesmo! Sou exagerado quando gosto de alguém ou de alguma coisa.  Peço, pois, paciência ao caríssimo leitor.

Embora tenha apresentado, em crônicas anteriores, os participantes cativos desse cenáculo informalíssimo (e põe informalidade nisso!), sem regras e nem compromissos, nunca é demais repetir a apresentação, notadamente para os que me leem pela primeira vez (e espero que não pela última). Compunha-se este círculo de palpiteiros, além deste cronista (claro), o Marcelo, estudante de História; o Marcão, que é advogado; o Nelson, psicólogo e o Zito, que é sociólogo, mas que trabalha como gerente de banco. Recentemente, o professor João, que é filósofo, mas que leciona Matemática num conhecido colégio particular da cidade, de tanto dar pitacos em nossas conversas, acabou incorporado, como membro pleno.

“Você acredita mesmo nisso, Zito?”, indaguei, mais em tom de provocação. “Como o homem humilhado haverá de triunfar? Através de uma revolução? Ou as elites mundiais terão um súbito ataque de generosidade e lucidez, e vão dividir suas riquezas com os miseráveis? Cai na real, amigo! Triunfarão pelas armas? Mediante o terrorismo? Ora, ora, ora. Isso não passa de retórica do poeta. É bonito de se ler, mas sem nenhum efeito prático”, emendei.

“É questão de lógica e de tempo, Pedrão. Hoje, dois terços da humanidade trabalham e geram riquezas para o um terço ocioso usufruir. E o número de miseráveis no mundo cresce em progressão geométrica. Não tenha dúvidas que a revolta desses bilhões de pessoas excluídas aumenta na mesma proporção da sua exclusão. No dia em que aparecer um líder carismático, capaz de mobilizar multidões, sai de baixo!”, Zito retrucou, aos berros.

“Onde você vai encontrar essa pessoa tão especial, com poder de convencimento ímpar, absolutamente anormal? Qual o meio que ela irá utilizar para transmitir sua mensagem, para convocar as massas? O rádio? A televisão? Os jornais? Cai na real! Mesmo que conseguisse espaço em algum desses meios de comunicação, esse insensato agitador seria preso à primeira aparição, por subversão”, voltei à carga. “Cite um precedente, um único, um só que tenha dado certo”, desafiei.

“Ora, você precisa ler mais História ou ir mais ao cinema”, se intrometeu o Marcelo, estudante dessa disciplina na PUC de Campinas. “Você não conhece a Guerra dos Gladiadores?!”, acrescentou, no tom de sabichão, pedante e irritante, que sempre dava às suas intervenções. “Spartacus não precisou de rádio, jornal ou televisão para formar seu exército de esfarrapados, pois, em 73 a C., quando sublevou os escravos de Roma contra a classe dirigente da superpotência da época, esses meios sequer existiam”, argumentou.   

“Sua coragem e seu instintivo senso guerreiro, em pouco tempo, chegaram a colocar em cheque a estabilidade política de todo o império. Começou sua cruzada pela liberdade com 78 escravos, que fugiram da escola de gladiadores de Cápua (a 130 milhas de Roma). Não tardou para que ocorressem adesões aos milhares. Sob a sua liderança, 90 mil pessoas maltrapilhas, subnutridas e mal-armadas, conseguiram vencer batalhas importantes, umas vinte, contra a mais sofisticada e melhor aparelhada  máquina de guerra do Planeta de então. Está nos livros. Isso não é lenda, é história!”, Marcelo aduziu, com entusiasmo.

“Muito bem”, voltei à carga, “o que aconteceu com Spartacus? Estabeleceu seu império de igualdade e justiça? Trouxe algum benefício para a humanidade? Pode ser considerado vencedor? Não! Foi vencido por Crasso, dois anos depois de ter iniciado o seu levante. E impôs-se, como sempre acontece, a lógica do vencedor, que permanece a mesma até hoje. Ou seja, os sublevados, depois de batidos, teriam que ser punidos de uma forma que todos vissem e que, acima de tudo, desestimulasse novas rebeliões. E assim, Spartacus, e seus seguidores mais chegados, foram crucificados. Isso também não é lenda, é história!”, respondi mais irritado que o normal, praticamente colocando o dedo em riste no nariz de Marcelo.

A discussão, como seria de se esperar, generalizou-se. Todos queriam dar seus palpites ao mesmo tempo. A totalidade do grupo apoiou a tese do Zito,  do triunfo, um dia (num futuro muito remoto, certamente) do homem humilhado. Pudera! São todos jovens, extravasando ideais por todos os poros! O tempo (infelizmente) se encarregará de devolvê-los à realidade. É o que sempre acontece.

Depois de quase sair no tapa com o Marcelo, e para não deixar que alguém ficasse com a última palavra, voltei à carga, apresentando a conclusão de um texto, do professor Paulo Geraldo, que pincei no site Aldeia, no qual ele comenta o filme “Spartacus”, dirigido por Stanley Kubrick, cuja anotação tirei, solenemente, do bolso da camisa.

O mestre escreveu: “Ao longo da História...a lealdade conduziu muitas pessoas a grandes sofrimentos e, até, a uma morte cruel. Mas, nos nossos dias, é uma virtude esquecida. Qualquer par de moedas, qualquer novidade aparentemente vantajosa nos faz esquecer os deveres e nos leva a quebrar os nossos laços, enchendo a nossa vida de traições a que nos vamos habituando”. Li a citação e fui saindo de fininho, sem esperar as respostas do grupo. Afinal, agora eu estava preocupado, exclusivamente, com um problema mais imediato e urgente. Ou seja, com a desculpa que teria que dar para convencer a esposa, por chegar tão tarde em casa... É, a vida é assim...


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