O
tempo está em nós
Pedro J. Bondaczuk
A infância ocupa em nossas lembranças (pelo menos
nas da maioria das pessoas) um lugar especial. Ganha projeção, adquire
destaque, permanece indelével, mesmo que tenha sido amarga, dolorosa,
abandonada e frustrante. Ao que se deve esse comportamento? Possivelmente, à
fraqueza da memória. Para preencher um vazio de lembranças, inventa-se uma
fantasia qualquer e passa-se a acreditar nela. Todos com quem converso, com
maior ou menor ênfase, falam desse período como de uma era dourada em que eram
"felizes e não sabiam". Do que temos saudade, na verdade, não é de
fatos e acontecimentos específicos dessa fase, mas de nós mesmos. Da inocência
perdida, dos sonhos deixados para trás, dos ideais esfacelados pelo caminho.
Rubem Braga, o guru de todos os cronistas, tem uma passagem reveladora a
respeito.
Afirma, em determinado trecho da crônica "O
sino de ouro", publicada no livro "A Borboleta Amarela":
"...Cada um de nós quando criança tem dentro da alma seu sino de ouro que
depois, por nossa culpa e miséria e pecado e corrupção, vai virando ferro e
chumbo, vai virando pedra e terra e lama e podridão". É a isso que chamo
de perda da inocência. Mas seria ruim essa transformação? Não seria mais
seguro, prudente e racional pisar o solo da realidade, enfrentar cara-a-cara,
de peito aberto, os perigos e as frustrações, correr atrás somente do que seja
factível, desenvolver nosso potencial até seu real limite, sem extrapolar além
das nossas possibilidades? Entendo que sim.
Particularmente, amo e valorizo toda a minha vida. Se
fosse possível, gostaria de ser eterno, com todos os problemas que essa
eternidade viesse eventualmente a trazer. Porém, tivesse que eleger determinada
fase como a melhor, escolheria não a infância, mas a plena maturidade. Se não
soube aproveitar determinadas oportunidades que apareceram nesse período, foi
pela minha própria cegueira. Ademais, é preciso olhar sempre para a frente,
mesmo sabendo que lá, em algum lugar do futuro (que pode ser o próximo segundo,
quem sabe) está a nossa extinção. Mas pode estar, também, o sucesso, aquele
êxito que perseguimos desde crianças e que, se obtido, nos tornará imortais no
coração dos semelhantes. Pode estar o amor se ainda estiver ausente da nossa
vida. Pode estar a felicidade identificável (pois na maioria das vezes somos
felizes em determinados momentos ou períodos e não conseguimos nos dar conta
disso).
Entre dar cordas à memória, em busca do que passou,
e projetar um amanhã, que pode nem mesmo existir, prefiro, por uma questão de
postura e formação, o segundo. O tempo é meu capital. Não posso desperdiçar nem
um instante com lembranças inúteis. Quando não houver forma de fugir das
recordações, que elas sejam usadas como matérias-primas de contos, crônicas ou
poesias. Cyro dos Anjos escreve, no livro "Dois Romances":
"Inútil tentativa de viajar o passado, penetrar no mundo que já morreu e
que, ai de nós, se nos tornou interdito, desde que deixou de existir, como
presente, e se arremessou para trás". Uso, sem dúvida, as experiências que
adquiri. Mas para cumprir meu papel. Para deixar a obra a que me propus. Para
evitar de repetir os mesmos erros que cometi. Para não tropeçar nos mesmos
buracos e nem despencar nos mesmos abismos. Uso, sim, o que passou,
principalmente a lembrança de quem já se foi, para fazer justiça com os que
foram bons, gentis, amáveis e amigos, perpetuando alguns de seus atos e
virtudes em textos.
André Maurois, em "Vozes da França",
atribui essa aura de magia que conferimos à infância ao fato de nesse período
não tomarmos ciência da real dimensão da maldade humana, por causa da proteção
e abrigo que nossos pais nos garantem. Isto, contudo, podia ser verdade em seu
país e em seu tempo e não no Brasil de 2016. Há meninos a dar com pau pelas
ruas com dois, quatro, dez ou mais homicídios nas costas. Há bandidos
mirins muito mais escolados e experientes na arte de espoliar bens alheios do
que assaltantes adultos, com várias penas cumpridas. Há crianças que são
privadas da infância desde o nascimento, dada a fragilidade, a ignorância, a
ingenuidade ou a irresponsabilidade de pais que não têm condições de cuidar
sequer de si, quanto mais de pôr filhos no mundo. Será que elas vão encarar
essa fase como "tempos mágicos"? Deixo para reflexão outra citação de
Cyro dos Anjos: "Na verdade as coisas estão é no tempo e o tempo está é
dentro de nós". Para não se extinguir comigo é que registro a sua
passagem.
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