Deixai
os namorados
Pedro J.
Bondaczuk
O saudoso poetinha, Vinícius de Moraes, por tudo o
que escreveu, em verso e prosa, bem que poderia ser considerado uma espécie de
“patrono nacional dos namorados”. Quase tudo o que nos legou – quer se trate de
poesia, quer de crônicas, quer, e principalmente, de letras de inesquecíveis
canções que enriquecem e valorizam a MPB – tem, como temática central, o amor,
com todas as suas nuances e contradições. Fala-nos de ciúmes, de saudades, de
beijos, de dotes da mulher amada e de tantos e tantos outros aspectos desse
maiúsculo sentimento, que nos causa tantos delírios, mas também tantos
sofrimentos (quando não correspondido, claro).
Pincei, aleatoriamente, este trecho do livro de
Vinicius de Moraes, “Para viver um grande amor” (Companhia das Letras, 1991),
que diz: “Nada há de mal no beijo dos namorados, como no amor dos pássaros.
Deixai-os nos seus parques, nas suas ruas escuras, nos seus portões de casa.
Deixai-os namorar...” Nem sempre deixam. E isso não de hoje, mas desde sempre,
desde épocas remotas, perdidas no tempo.
Ora alega-se a pouca idade do casal (ou de um dos
seus componentes) para impedir seu namoro, ora a diferença de classes sociais
(ainda se utilizam essas alegações, por incrível que pareça!), ora as inimizades
entre suas respectivas famílias e vai por aí afora. Arrolam-se infindáveis
pretextos para atrapalhar esse momento ímpar na vida de qualquer pessoa, como
se alguém tivesse (seja quem for) esse direito.
O trecho que citei acima é da crônica “Namorados
Públicos”, que consta do livro mencionado, que já li e reli dezenas de vezes e
não canso de tornar a ler. Mas não é bem Vinícius e sua obra que vou abordar
nestas descompromissadas considerações. Tudo isso é pretexto para confidenciar
que acabo de ler, pela décima vez, a peça “Romeu e Julieta”, de William
Shakespeare, e que encontrei novidades insuspeitadas, que nas nove leituras
anteriores não havia encontrado.
Não me refiro, claro, ao enredo, que como a maioria
das pessoas cultas (e das nem tanto), conheço de trás para a frente, de cor e
salteado, e sou capaz de repetir tim-tim por tim-tim. O que me chama, em
especial, a atenção, são as metáforas utilizadas por Shakespeare. Muitos não
sabem, mas o gênio de Stratford-on-Avon considerava-se não propriamente um
dramaturgo, mas, sobretudo, poeta.
Tanto que, em vida, não publicou uma única das suas
tantas peças, que só vieram a ser publicadas sete anos após a sua morte
(ocorrida na data do seu 52º aniversário, em 23 de abril de 1616). Enquanto
vivo, ele bancou as publicações de dois poemas narrativos (“Vênus e Adonis” e
“O rapto de Lucrecia”) e de uma coletânea de 164 sonetos, aliás, considerados,
quase que consensualmente (com o que, também, concordo) dos mais belos já
escritos em todo o mundo e em todos os tempos.
Para “saborear” melhor o drama de Romeu e Julieta
(que se passa, apenas, em cinco dias, desde que os dois jovens, quase meninos –
ela com treze anos, prestes a completar catorze e ele com dezesseis anos – se
apaixonam, até o momento em que ambos morrem), recorri, desta vez, ao texto
original em inglês, editado por T. J. B. Spencer (Penguim Books, 1967).
E por que fiz isso, se é notória a minha dificuldade
nesse idioma, no qual não sou, propriamente, um “expert”? Porque ele apresenta
características que em nenhuma das quatro traduções que li (a de Décio
Pignatari, da Companhia das Letras; a de Izabel de Lorenzo, da Editora Sol; a
de Carlos Alberto Nunes, da Editora Melhoramentos e a de Onestaldo de Penna
Fort, esta mais antiga, de 1940, publicada pelo MEC) dá para constatar.
Vale a pena, e muito, esse esforço. Descobri, por
exemplo, na edição em inglês, que o diálogo entre Romeu e Julieta, que se
inicia na Cena 5 do Primeiro Ato e se prolonga, daí por diante, é apresentado
na forma de sonetos. E para um projeto de poeta, como eu, viciado em poesia
como sou, isso é a delícia das delícias. Já nas traduções que li, esse mesmo
trecho (embora muito bem exposto) está em forma de prosa, de texto corrido, o
que, no meu entender, reduz muito o seu impacto.
São grandiosas, por exemplo, as palavras que
Shakespeare coloca na boca de Romeu, ao ver sua amada desfalecida, julgando que
o entorpecente que ela tomara fora veneno e que estivesse morta e não apenas
desacordada: “Ah, Julieta querida, como você pode estar tão bela ainda? Será
que o fantasma da morte, esse monstro horrível, se apaixonou por você e a
escondeu aqui na escuridão para fazer de você sua amante? Com medo disso, eu
vim protegê-la para sempre: nunca mais deixarei este palácio sinistro e tenebroso!”.
E arremata, desta forma, antes de, ele sim, tomar o
veneno que poria fim à sua vida: “Aqui, aqui mesmo ficarei, junto aos vermes
que são seus servidores; aqui estabelecerei minha morada eterna, libertando do
peso das estrelas funestas este corpo cansado do mundo. Meus olhos olhem pela
última vez! Meus braços, abracem pela última vez! E lábios, que são portas de
alento, selem com um beijo legítimo este pacto a prazo com a morte voraz!”.
Há casos e mais casos, pelo mundo afora, não
importando tempo e lugar, de namoros dramáticos como este, descrito pela
inspirada pena de William Shakespeare. São amores atrapalhados por moralistas
de plantão, por basbaques empedernidos e por infelizes de carteirinha, que
sofrem com a felicidade alheia. Por isso, renovo o apelo com que iniciei estas
descompromissadas considerações, recorrendo, de novo, ao poetinha Vinícius de
Moraes e reiterando, enfático: “Deixai-os (os namorados) nos seus parques, nas
suas ruas escuras, nos seus portões de casa. Deixai-os namorar...”
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