Friday, April 15, 2016

Soviéticos precisam reaprender a criar


Pedro J. Bondaczuk


A União Soviética, caso pretenda ser aquela superpotência com que seu povo sonha, não a exportadora de uma revolução e de uma ideologia fracassadas, mas uma sociedade livre, próspera e justa, terá de passar por um longo e penoso aprendizado. Em primeiro lugar, os trabalhadores precisarão "reaprender" a trabalhar, a empenhar-se em suas tarefas com eficiência e criatividade.

Para isso, todavia, o sistema terá de mudar. Os operários terão de contar com estímulos muito mais palpáveis do que aquele que tiveram nos derradeiros 74 anos, que era o da construção de um Estado forte, às custas da sua despersonalização. O primeiro passo a ser dado, portanto, está no campo da conscientização, que não deve ser confundida com a propaganda estatal, em geral mentirosa, e por isso alienadora.

Essa tarefa deve ser assumida conjuntamente por todos os reformistas, não importando qual seja sua corrente. Os presidentes Mikhail Gorbachev, da URSS, e Bóris Yeltsin, da Rússia, precisam deixar de lado seu antagonismo pessoal pelo bem comum.

Apenas atuando juntos ambos poderão, quem sabe, começar agora uma tarefa que é tão grande que certamente será concluída apenas por gerações vindouras. O Congresso dos Deputados do Povo, órgão ao qual compete traçar o balizamento legal do processo de reformas, tem que deixar de lado simpatias e antipatias e fazer o que precisa ser feito, por mais impopulares que suas decisões possam parecer.

O filósofo católico e jornalista francês Michel Serres, num lúcido livro publicado recentemente no Brasil pela Editora Quadrante, acentuou: "Depois do meio do rio, percebe-se a outra margem. O momento cardeal é esse, quando se está entre as duas margens. Quando a noção de segurança se esvai e tudo depende da própria iniciativa e coragem. Em outros termos, trata-se de deixar a cultura de nascença, partir rumo a outra cultura, a outro conhecimento, tornar-se um inglês, um alemão, um matemático, um caçador de passarinhos". A União Soviética contemporânea está "no meio do rio".

A insegurança predomina, inclusive acerca da sua sobrevivência, diante da crescente e quase incontrolável onda de separatismo, que ameaça a federação de desagregação. Agora, porém, é que é a hora da grande virada. Claro que ela não virá sem sacrifícios e muito menos sem trabalho.

Compete aos líderes convencer seus liderados dessa realidade. É tarefa de Gorbachev, de Yeltsin, do ex-chanceler Eduard Shevardnadze, dos prefeitos de Moscou, Gavril Popov, e Anatoly Sobchak, de Leningrado, e outros líderes fortes, assumirem esse papel de "mestres". Mas para isso terão de deixar de lado "vedetismos" e interesses  pessoais, em nome de uma tarefa muito maior.

A União Soviética atual atravessa um momento caótico de desorganização de suas instituições, que ninguém sabe direito mais quais são, e principalmente de seu aparato produtivo. O exilado escritor Alexander Solzhenitsyn retratou bem a situação ao escrever, semanas antes da frustrada tentativa de golpe de Estado de 19 de agosto passado:

"Em nossa economia atual tudo exala miséria e é preciso encontrar uma saída. É uma necessidade vital! Urge que se dê um sentido ao trabalho: faz meio século que ninguém mais tem o menor interesse em trabalhar! E não há mais ninguém para fazer crescer o trigo, mais ninguém para cuidar do rebanho. E milhares de pessoas moram no que não se poderia chamar de casas ou passam anos enfurnadas em 'moradias' pútridas. E todos os velhos e inválidos vivem miseravelmente. E nossos espaços outrora tão belos estão agora imundos pelos restos industriais, intransitáveis devido ao movimento de nossas estradas assustadoras".

Os soviéticos precisam aprender. Aprender a administrar a liberdade que conquistaram nas ruas. Aprender a dar um sentido grandioso às suas próprias vidas.


(Artigo publicado na página 16, Internacional, do Correio Popular, em 3 de setembro de 1991).

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