De Porto Alegre Camus
elogia somente a luz
Pedro
J. Bondaczuk
“A luz é muito bela. A
Cidade, feia. Apesar dos seus cinco rios. Essas ilhotas e civilização são
frequentemente horrendas”. Essa seca, rápida e sincera observação reflete a
impressão que Porto Alegre deixou no espírito de Albert Camus, quando lá
esteve, em 9 e 10 de agosto de 1949. Os portoalegrenses não ficaram sabendo
disso, na oportunidade, porquanto essa opinião do escritor só ficou conhecida
anos depois da sua morte, quando da publicação, em português, do seu livro
“Diário de Viagem”. Mas os moradores atuais, que conhecem, agora, o que Camus
escreveu sobre a cidade, não se sentem nada confortáveis com essa avaliação.
Eu, que embora não seja portoalegrense, sou gaúcho, a princípio também detestei
essas palavras. Ponderando, porém, sobre o contexto que originou essa
impressão, dou o devido desconto.
Porto Alegre, afinal,
foi o último compromisso (no Brasil, mas não na América do Sul) de uma viagem
absurda e desumana, que só em nosso País, consumiu 48 frenéticos dias, com uma
programação maluca, dessas de esgotar o mais resistente dos resistentes
super-herois de histórias de quadrinhos e de deixar furioso até um monge de
pedra. Falar das dimensões continentais do Brasil é chover no molhado. É ser
mais óbvio do que aquele famoso personagem de Eça de Queiroz, o conselheiro
Acácio, protótipo de obviedades. Imaginem atravessar esse gigantesco
território, quase das dimensões da Europa Ocidental inteira, duas vezes, de
alto a baixo, com escassas horas de descanso, mas não para fazer turismo, e sim
para cumprir uma série de intermináveis compromissos, com expectativas
(justamente) excepcionais, por se tratar de personalidade de grande relevo no
mundo literário (e também jornalístico) e, por consequência, cultural.
Para o leitor ter uma
idéia, informo o roteiro de Camus no Brasil. Desembarcou, primeiro, no Rio de
Janeiro, após incompreensível viagem de navio (ninguém sabe por que) e, mal
pisou em terra, teve que dar entrevistas e mais entrevistas, participar de
almoços, jantares e coquetéis, ouvir discursos longos, monótonos, vazios e sem
sentido e ter de se pronunciar a seguir em conferências marcadas em cima da
hora. Ficasse, somente, na Capital Federal, seria assim mesmo cansativo, mas
passável. Porém não ficou. Fez uma viagem de automóvel, em estradas de terra
lamacentas e esburacadas, mais picadas do que propriamente rodovias, para
conhecer o Vale do Ribeira, passando por Registro. Para complicar, o motorista
se perdeu. E para complicar mais ainda, teve que se hospedar num hospital, por
falta de hotel.
Dali, regressou ao Rio,
contudo mal pôde respirar. Embarcou, incontinenti, para o Nordeste, visitando
Salvador, Recife, Fortaleza e retornando, mais uma vez à Capital Federal. É verdade que essas
viagens foram todas de avião, mas nem por isso foram menos cansativas. As
aeronaves de então, a hélices, lentas e desconfortáveis, não eram nem
remotamente parecidas com as atuais. Nas capitais nordestinas, Camus passou
pela mesma provação anterior: jantares, almoços, coquetéis, entrevistas com
perguntas repetitivas e óbvias (não raro imbecis), discursos e mais discursos,
além de conferências dele. Findo esse périplo, voltou, de novo, ao Rio de
Janeiro. Mal tomou fôlego, já teve que ir para São Paulo, com a mesmíssima
recepção das escalas anteriores. Depois de tudo isso, tinha, finalmente, o
compromisso de ir a Porto Alegre. Responda, caro leitor, mesmo que fosse a
turismo, como você se sentiria após essas idas e vindas, vencendo distâncias
tamanhas e encarando tantas chateações?
Comentei, dia desses,
essa viagem para lá de maluca com um amigo, e este argumentou: “Camus não deve
ter sentido tanto assim. Afinal, era jovem, com 36 anos de idade, praticamente
no auge da maturidade”. O amigo se esqueceu, todavia, que se tratava não de um
homem saudável, mas de alguém adoentado. Tanto que, quando regressou à França,
teve recaída da tuberculose, o que, na verdade, ocorreu ainda no Brasil, e
precisou ser internado em um sanatório. A experiência foi tão desagradável,
pelo exagero, que o escritor decidiu não viajar mais para lugar algum. É
verdade que abriu duas exceções: foi para a Itália e para a Grécia. Mas nenhuma
dessas visitas foram nem de longe parecidas com a que fez à América do Sul.
Quanto à opinião de
Camus sobre Porto Alegre, os gaúchos não deveriam ficar agastados. É certo que
os que testemunharam sua visita à cidade se decepcionaram com o que escreveu.
Argumentam: “Afinal, não foi ele que classificou o Brasil como o país da
indiferença e da exaltação? Por que, pois, não exaltou Porto Alegre?”. Porque
não o deixaram conhecer a cidade. Assediaram-no de tal forma, que ele não pôde
sequer dar uma simples caminhada pelas ruas. Na verdade, não pôde nem ver
praticamente nada dela. Avaliou, portanto, a capital gaúcha pelo pouquíssimo
que viu dela, da janela do avião. A coisa já começou mal, durante o próprio vôo
de São Paulo a Porto Alegre. O escritor sentiu-se mal e registrou em seu diário
que, “pela primeira vez, tive pequena crise de falta de ar”.
Desembarcou sob uma
temperatura baixíssima, de 2 graus centígrados (em dez cidades gaúchas havia
nevado), sofrendo um baita choque térmico. Relatou que ao descer do avião,
“havia quatro ou cinco franceses congelados”, esperando-o no aeroporto. E havia
outro complicador para um sujeito já esgotado, como ele, contando os minutos
para ir embora, tendo à frente ainda mais três escalas – Montevidéu, Buenos
Aires e Santiago: “Anunciam que devo fazer uma conferência à noite, o que não
estava combinado”. Eu, no lugar de Camus, cancelaria esse compromisso marcado à
sua revelia. Ele, porém, foi gentilíssimo em não cancelar. Ou não?
Além do que, o escritor
não morria de amores por nenhuma cidade do mundo. Não achava nenhuma
particularmente bela. Vejam, por exemplo, o que escreveu sobre Nova York,
quando lá esteve: “Seu cheiro é ruim. É um aroma de ferro e cimento – o ferro
predomina”. Na sequência dessa sua viagem à América do Sul, não poupou Buenos
Aires. Escreveu, sobre a capital argentina, onde pelo menos pôde dar breve
passeio: “Dei uma volta pela cidade, de uma feiúra rara”. De Porto Alegre, pelo
menos, elogiou a luz. E também o que chamou de “kapotes”, ou seja, os ponchos
que os gaúchos trajavam, o que era normal num dia de agosto supergélido na
congelante capital gaúcha durante o inverno.
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