Sunday, April 24, 2016

De Porto Alegre Camus elogia somente a luz

Pedro J. Bondaczuk

A luz é muito bela. A Cidade, feia. Apesar dos seus cinco rios. Essas ilhotas e civilização são frequentemente horrendas”. Essa seca, rápida e sincera observação reflete a impressão que Porto Alegre deixou no espírito de Albert Camus, quando lá esteve, em 9 e 10 de agosto de 1949. Os portoalegrenses não ficaram sabendo disso, na oportunidade, porquanto essa opinião do escritor só ficou conhecida anos depois da sua morte, quando da publicação, em português, do seu livro “Diário de Viagem”. Mas os moradores atuais, que conhecem, agora, o que Camus escreveu sobre a cidade, não se sentem nada confortáveis com essa avaliação. Eu, que embora não seja portoalegrense, sou gaúcho, a princípio também detestei essas palavras. Ponderando, porém, sobre o contexto que originou essa impressão, dou o devido desconto.

Porto Alegre, afinal, foi o último compromisso (no Brasil, mas não na América do Sul) de uma viagem absurda e desumana, que só em nosso País, consumiu 48 frenéticos dias, com uma programação maluca, dessas de esgotar o mais resistente dos resistentes super-herois de histórias de quadrinhos e de deixar furioso até um monge de pedra. Falar das dimensões continentais do Brasil é chover no molhado. É ser mais óbvio do que aquele famoso personagem de Eça de Queiroz, o conselheiro Acácio, protótipo de obviedades. Imaginem atravessar esse gigantesco território, quase das dimensões da Europa Ocidental inteira, duas vezes, de alto a baixo, com escassas horas de descanso, mas não para fazer turismo, e sim para cumprir uma série de intermináveis compromissos, com expectativas (justamente) excepcionais, por se tratar de personalidade de grande relevo no mundo literário (e também jornalístico) e, por consequência, cultural.

Para o leitor ter uma idéia, informo o roteiro de Camus no Brasil. Desembarcou, primeiro, no Rio de Janeiro, após incompreensível viagem de navio (ninguém sabe por que) e, mal pisou em terra, teve que dar entrevistas e mais entrevistas, participar de almoços, jantares e coquetéis, ouvir discursos longos, monótonos, vazios e sem sentido e ter de se pronunciar a seguir em conferências marcadas em cima da hora. Ficasse, somente, na Capital Federal, seria assim mesmo cansativo, mas passável. Porém não ficou. Fez uma viagem de automóvel, em estradas de terra lamacentas e esburacadas, mais picadas do que propriamente rodovias, para conhecer o Vale do Ribeira, passando por Registro. Para complicar, o motorista se perdeu. E para complicar mais ainda, teve que se hospedar num hospital, por falta de hotel.

Dali, regressou ao Rio, contudo mal pôde respirar. Embarcou, incontinenti, para o Nordeste, visitando Salvador, Recife, Fortaleza e retornando, mais uma vez  à Capital Federal. É verdade que essas viagens foram todas de avião, mas nem por isso foram menos cansativas. As aeronaves de então, a hélices, lentas e desconfortáveis, não eram nem remotamente parecidas com as atuais. Nas capitais nordestinas, Camus passou pela mesma provação anterior: jantares, almoços, coquetéis, entrevistas com perguntas repetitivas e óbvias (não raro imbecis), discursos e mais discursos, além de conferências dele. Findo esse périplo, voltou, de novo, ao Rio de Janeiro. Mal tomou fôlego, já teve que ir para São Paulo, com a mesmíssima recepção das escalas anteriores. Depois de tudo isso, tinha, finalmente, o compromisso de ir a Porto Alegre. Responda, caro leitor, mesmo que fosse a turismo, como você se sentiria após essas idas e vindas, vencendo distâncias tamanhas e encarando tantas chateações?

Comentei, dia desses, essa viagem para lá de maluca com um amigo, e este argumentou: “Camus não deve ter sentido tanto assim. Afinal, era jovem, com 36 anos de idade, praticamente no auge da maturidade”. O amigo se esqueceu, todavia, que se tratava não de um homem saudável, mas de alguém adoentado. Tanto que, quando regressou à França, teve recaída da tuberculose, o que, na verdade, ocorreu ainda no Brasil, e precisou ser internado em um sanatório. A experiência foi tão desagradável, pelo exagero, que o escritor decidiu não viajar mais para lugar algum. É verdade que abriu duas exceções: foi para a Itália e para a Grécia. Mas nenhuma dessas visitas foram nem de longe parecidas com a que fez à América do Sul.

Quanto à opinião de Camus sobre Porto Alegre, os gaúchos não deveriam ficar agastados. É certo que os que testemunharam sua visita à cidade se decepcionaram com o que escreveu. Argumentam: “Afinal, não foi ele que classificou o Brasil como o país da indiferença e da exaltação? Por que, pois, não exaltou Porto Alegre?”. Porque não o deixaram conhecer a cidade. Assediaram-no de tal forma, que ele não pôde sequer dar uma simples caminhada pelas ruas. Na verdade, não pôde nem ver praticamente nada dela. Avaliou, portanto, a capital gaúcha pelo pouquíssimo que viu dela, da janela do avião. A coisa já começou mal, durante o próprio vôo de São Paulo a Porto Alegre. O escritor sentiu-se mal e registrou em seu diário que, “pela primeira vez, tive pequena crise de falta de ar”.

Desembarcou sob uma temperatura baixíssima, de 2 graus centígrados (em dez cidades gaúchas havia nevado), sofrendo um baita choque térmico. Relatou que ao descer do avião, “havia quatro ou cinco franceses congelados”, esperando-o no aeroporto. E havia outro complicador para um sujeito já esgotado, como ele, contando os minutos para ir embora, tendo à frente ainda mais três escalas – Montevidéu, Buenos Aires e Santiago: “Anunciam que devo fazer uma conferência à noite, o que não estava combinado”. Eu, no lugar de Camus, cancelaria esse compromisso marcado à sua revelia. Ele, porém, foi gentilíssimo em não cancelar. Ou não?

Além do que, o escritor não morria de amores por nenhuma cidade do mundo. Não achava nenhuma particularmente bela. Vejam, por exemplo, o que escreveu sobre Nova York, quando lá esteve: “Seu cheiro é ruim. É um aroma de ferro e cimento – o ferro predomina”. Na sequência dessa sua viagem à América do Sul, não poupou Buenos Aires. Escreveu, sobre a capital argentina, onde pelo menos pôde dar breve passeio: “Dei uma volta pela cidade, de uma feiúra rara”. De Porto Alegre, pelo menos, elogiou a luz. E também o que chamou de “kapotes”, ou seja, os ponchos que os gaúchos trajavam, o que era normal num dia de agosto supergélido na congelante capital gaúcha durante o inverno.


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