Lauto banquete de
sabedoria e emoção
Pedro
J. Bondaczuk
A releitura é um dos
hábitos mais antigos que adquiri e que cultivo. Além do prazer que me
proporciona, é uma das formas mais perfeitas que conheço de aprendizado, sem
deixar escapar nenhuma lição que se possa extrair. É, a rigor, a “degustação”
de livros especiais, daqueles que me deram maior satisfação quando da primeira
leitura, o que se renova e se amplia
nesse “replay”. Por que? Porque a releitura é feita com vagar, com criteriosa
análise de parágrafo por parágrafo, para extrair o “néctar” não extraído antes.
Lógico que não releio tudo o que já tenha lido. A releitura é destinada,
apenas, a livros muito especiais, e só de autores que me servem de parâmetro,
de modelo, de referencial de como fazer boa literatura. Há quem entenda que
esse procedimento seja perda de tempo. Azar de quem pensa assim. Não sabe o que
está perdendo.
Para cada dois livros
inéditos que leio, faço, em média, uma releitura. Esse número não é fixo,
variando conforme as circunstâncias e necessidades, Ora releio mais, ora menos,
mas a proporção é quase sempre essa. Entre os autores que mais releio, está o
argentino Jorge Luís Borges. Quem me conhece bem e acompanha atentamente o que
escrevo, sabe porque procedo assim. Nunca escondi de ninguém que esse escritor
é, para mim, uma espécie de “guru”, de mentor espiritual, de guia literário,
apesar de nunca havermos nos encontrado e nem trocado correspondência. Para
Borges, nunca passei de “ilustre desconhecido”. Ele jamais soube que eu sequer
existi. E isso importa? Para mim, não.
A maior parte dos
livros que reli desse escritor foi de contos e de ensaios. Todavia, dia desses,
redescobri um volume de poesias dele ao qual não dei maior importância quando
da leitura original, deixando, portanto, de extrair o valioso conteúdo de
sabedoria e emoção nele contido. Trata-se de “La rosa profunda”, edição em
castelhano, idioma que na oportunidade eu não dominava bem. Provavelmente, por
isso, não lhe dei a atenção que merecia. Agora a coisa foi diferente. Não que
eu tenha me tornado “expert” na língua de Cervantes, embora tenha evoluído
bastante nesse aspecto. Trata-se de um livro “fininho”, de apenas 87 páginas, o
que me permitiu analisá-lo em profundidade, de fato praticamente virá-lo no avesso,
sem deixar escapar nenhuma nuance, por ínfima que fosse, e nem o mais obscuro
detalhe de cada poema.
“La rosa profunda”
reúne poesias compostas por Borges entre 1972 e 1975. Nele, o autor aborda
temas recorrentes em seu fazer literário, como as máscaras, a nostalgia da
espada, as sombras tutelares, os inventários e enumerações, a arbitrariedade do
tempo para nós humanos, a inexorabilidade do destino e os espelhos, entre
tantos outros. O fulcro temático, todavia, é a rosa, o que justifica, claro, o
título do livro. Mas não uma rosa qualquer. Trata daquela “rosa eterna” dos
poetas. Da rosa invisível, aquela sonhada pelo poeta inglês John Milton. É a
rosa mística que Borges, mesmo depois de cego, visualizava com perfeição e que
se confundia com a imagem que fazia do mundo.
No que diz respeito, no
entanto, aos mistérios de vida e morte, há poemas que rivalizam em beleza e
verdade com os que dedicou à simbólica flor. Como este, intitulado “O suicida”:
“Não
restará na noite uma só estrela.
Não
restará a noite.
Morrerei
e comigo irá a soma
Do
intolerável universo.
Apagarei
medalhas e pirâmides,
Os
continentes e os rostos.
Apagarei
a acumulação do passado.
Farei
da história pó, do pó o pó.
Estou
a olhar o último poente.
Ouço
o último pássaro.
Lego
o nada a ninguém”.
Ou como essa espécie de
autodefinição, que intitulou, como seria de se esperar, de “Sou”:
“Sou
o que sabe não ser menos vão
Que
o vão observador que frente ao mudo
Vidro
do espelho segue o mais agudo
Reflexo
ou o corpo do irmão.
Sou,
tácitos amigos, o que sabe
Que
a única vingança ou o perdão
É
o esquecimento. Um deus quis dar então
Ao
ódio humano essa curiosa chave.
Sou
o que, apesar de tão ilustres modos
De
errar, não decifrou o labirinto
Singular
e plural, árduo e distinto,
Do
tempo, que é de um só e é de todos.
Sou
o que é ninguém, o que não foi a espada
Na
guerra. Um esquecimento, um eco, um nada”.
Ou como este poema, que
dedicou a tudo o que escreveu, ao qual deu o título de “Os meus livros”:
“Os
meus livros (que não sabem que existo)
São
uma parte de mim, como este rosto
De
têmporas e olhos já cinzentos
Que
em vão vou procurando nos espelhos
E
que percorro com a minha mão côncava.
Não
sem alguma lógica amargura
Entendo
que as palavras essenciais,
As
que me exprimem, estarão nessas folhas
Que
não sabem quem sou, não nas que escrevo.
Mais
vale assim. As vozes desses mortos
Dir-me-ão
para sempre”.
Para entender como
Jorge Luís Borges encarava a atividade poética, é indispensável ler, com a
devida atenção, o que ele escreveu no prólogo de “La rosa profunda”. O poeta
afirma, a certa altura: “(...) A palavra teria sido, no princípio, um símbolo
mágico, que a usura do tempo desgastaria. A missão do poeta seria restituir à
palavra, mesmo que de um modo parcial, sua primitiva e agora oculta virtude.
Todo verso teria dois deveres: comunicar um feito preciso e tocar-nos
fisicamente, como a proximidade do mar (...)”.
A releitura de “La rosa profunda” – que não passou de um refinado
“lanchinho” de beleza e de verdade quando lido pela primeira vez – foi, agora,
lauto banquete de sabedoria e emoção, que degustei como experiente epicurista.
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