Sunday, April 24, 2016

Fracasso do golpe é êxito da democracia


Pedro J. Bondaczuk


O povo soviético, em especial o russo, e mais especificamente o moscovita, marcou a maior vitória da democracia de que se tem notícia, pelo menos em nosso século, ao impedir o êxito do golpe contra o presidente Mikhail Gorbachev.

O movimento de resistência, embora de curta duração, liderado com pulso firme por Bóris Yeltsin, teve também seus mártires. Sete pessoas tombaram, ontem, na única batalha travada durante a crise, quando soldados e tanques tentaram avançar rumo ao Parlamento para desalojar dali os que defendiam a legalidade e arriscavam suas vidas para impedir que o país voltasse a cair nas trevas do totalitarismo.

A população de Moscou, portanto, tem motivos de sobra hoje para comemorar a restauração do estado de direito, apesar de suas dificuldades econômicas.

Embora seja um tanto prematuro fazer projeções sobre as conseqüências da inconseqüente e felizmente frustrada tentativa de golpista, pode-se traçar um paralelo entre os "Dez Dias que Abalaram o Mundo", título do célebre livro de John Reed, o norte-americano que testemunhou a Revolução de 1917, e os três últimos dias na URSS.

Naquela oportunidade, o comunismo fincava raízes no então Império Russo, despertando as esperanças e ansiedades dos milhões de desvalidos e explorados pelo mundo afora como opção para o capitalismo que então era praticado --- não muito diferente, é mister frisar, do de hoje.

Ontem, a impressão que se tem, é que esse sistema, especialmente na URSS, onde nasceu, começou a morrer, a desmoronar pelo menos na sua forma mais distorcida, perversa e intolerável: a do totalitarismo.

Além de Yeltsin, que marcou seu nome definitivamente na história contemporânea, não somente do seu país, mas mundial, pela sua coragem, determinação e capacidade de liderança, outros líderes da resistência merecem menção. Um deles é o ex-ministro de Relações Exteriores, Eduard Shevardnadze, que ainda em 20 de dezembro de 1990, quando renunciou ao cargo, denunciou o aglutinamento das forças retrógradas para defender intoleráveis e ilegítimos privilégios, enquanto parte considerável da população passava por privações. As filas continuam quilométricas nos armazéns do Estado em Moscou, com prateleiras literalmente vazias. Mas a esperança renasceu.

O grande herói dessa virada definitiva de uma página dolorosa na história da URSS foi, sem dúvida, o povo. Foi, por exemplo, o estudante de línguas estrangeiras entrevistado, anteontem, pelo correspondente da Rede Globo, Pedro Bial, que num português castiço, com sotaque lusitano, disse que estava disposto a morrer para impedir o sucesso do golpe. E o garoto tem apenas 21 anos!

Heroísmo beirando à loucura foi o da jovem soviética, que tentou deter o avanço dos tanques com seu frágil corpo. Heróis foram os cerca de 20 mil cidadãos desarmados que, ao invés de se recolherem, como coelhos assustados, em seus lares, formaram a barreira humana intransponível para a proteção dos líderes da resistência.

As autoridades soviéticas passam a ter agora uma responsabilidade multiplicada perante seu povo, depois da inequívoca manifestação de confiança, mais que isso, de exacerbada esperança, que este demonstrou durante o dramático episódio. Os líderes, entre os quais Mikhail Gorbachev, não têm mais o direito de cometer erros. Precisam governar com e para a população, deixando de lado vaidades pessoais e picuinhas políticas. Têm o maiúsculo dever, a suprema obrigação de trabalhar e pensar no bem estar dos 282 milhões de soviéticos, e não somente no de seus partidários, agregados ou protegidos.

O célebre slogan dos movimentos esquerdistas de que "o povo unido jamais será vencido" nunca foi mais verdadeiro do que nos últimos acontecimentos ocorridos na União Soviética. A humanidade está cansada de ditadores e ditaduras, embora cerca de seis dezenas delas ainda estejam no poder em várias partes do mundo.

Depois da reunificação da Alemanha, da abertura da isolacionista Albânia e da resistência ao golpe na URSS, mais do que nunca as multidões sem rosto passaram a ditar sua vontade.

(Artigo publicado na página 2 do suplemento "A Vitória da Democracia", do Correio Popular, que coordenei e editei, sobre a derrota dos golpistas que haviam deposto Mikhail Gorbachev na URSS, que circulou em 22 de agosto de 1991).

    

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