Sófocles esbanja
talento na descrição da peste
Pedro
J. Bondaczuk
As epidemias são
retratadas, em todas suas trágicas dimensões e consequências, em vários e
vários livros da mais remota antiguidade, quer a grega, quer a indiana, quer a
chinesa etc., como se pode comprovar nas relativamente escassas obras que
chegaram incólumes até nós. É certo que, invariavelmente, são tratadas como
fenômenos naturais, posto que nefastos, da natureza ou, o mais das vezes, como
“castigo dos deuses”. Pudera! Não se conheciam as verdadeiras causas dessas
doenças (e nem se poderia), notadamente da peste bubônica, aquela que mais
vezes é citada, posto que não nominalmente, mas mediante a descrição dos
sintomas. É o caso, por exemplo, de uma
das mais famosas (e geniais) peças da dramaturgia mundial: “Édipo rei”, do
grego Sófocles.
Ressaltar a importância
desse drama, e de seu autor, chega a ser redundante. Não há pessoa
razoavelmente bem-informada, de cultura mediana, que não conheça, nem que seja
algum escasso detalhe, por ínfimo que seja, desse icônico personagem, mesmo que
nunca tenha lido sequer o resumo da obra em que ele aparece e jamais tenha
assistido à peça, ou mesmo freqüentado, algum dia, qualquer teatro. Édipo, para
refrescar a memória dos “esquecidos”, é aquela figura que acabou se apaixonando
pela mãe, com a qual se casou e assassinando o pai, sem saber, claro, seu
vínculo filial com uma e com outro. A psicanálise apropriou-se desse infeliz
monarca ficcional para nomear um complexo, que nem mesmo é tão raro.
Recorde-se que a peça
foi escrita há quase três milênios (por volta de 430 a.C) e, ainda assim,
continua incrivelmente atual. Segue sendo, por exemplo, encenada (décadas,
séculos, milênios) em palcos os mais diversos, tanto de escolas quanto de
grandes teatros mundo afora e praticamente todos os dias. Quantas foram suas
encenações? Como saber?! Provavelmente, milhões!!! Quem sabe, até mais. Não
tenho dúvidas, por exemplo, que hoje mesmo, no momento em que escrevo estes
comentários, alguma companhia teatral, alhures, está encenando “Édipo rei”, em algum palco de Londres, Paris, Roma,
Nova York, Boston etc.etc.etc. Dela, sim, se pode afirmar que se trata de
campeã de audiência. Cabe, aqui, até mesmo, um superlativo (tão ao meu gosto):
campeoníssima!
O drama, criado por
Sófocles, começa com a cidade de Tebas sendo assolada pela epidemia de peste. É
certo que o dramaturgo utilizou a doença como uma espécie de metáfora.
Pretendeu, e conseguiu, com grande maestria, simbolizar a violência que se irradiava
e se expandia naquela comunidade de maneira contagiosa, que resultaria, ao fim
e ao cabo, na desgraça do infeliz personagem central.Sófocles escreve, a certa
altura da peça:
“(...) Ó poderoso
Édipo, rei da minha pátria! Já vês que somos de diferentes idades, nós que nos
achamos aqui, ao pé dos teus altares. São crianças que apenas podem andar;
velhos sacerdotes encurvados pela velhice; eu, o sacerdote de Júpiter, e estes,
que são os escolhidos entre a juventude. Nós e o resto do povo, com os ramos dos
suplicantes nas mãos, estamos na praça pública, prosternados diante dos templos
de Minerva e sobre as fatídicas cinzas de Imeno. A cidade, como tu mesmo vês,
comovida tão violentamente pela desgraça, não pode levantar a cabeça do fundo
do sangrento torvelinho que a revolve. Os frutíferos germes secam nos campos;
morrem os rebanhos que pastam nos prados, assim como as crianças nos peitos de
suas mães (...)”
Terrível descrição de
uma cidade tomada pelo medo, com a morte ceifando, sem cessar, multidões. É o
relato de alguém que já testemunhou uma epidemia, com suas catastróficas
conseqüências e captou com precisão as reações dos atingidos. E Sófocles
prossegue: “(...) Invadiu a cidade o deus que provoca a febre: a destruidora
peste que deixa desabitada a mansão de Cadmo e enche o inferno com nossas
lágrimas e gemidos. Nem eu e nem estes jovens que estamos junto ao seu lugar,
viemos implorar-te como a um deus, mas porque te julgamos o primeiro entre os
homens para socorrer-nos na desgraça e para obter o auxílio dos deuses. Tu, que
recém chegaste á cidade de Cadmo, nos redimiste do tributo que pagávamos à
terrível esfinge e isto sem haver nos inteirado de nada e nem haver dado
nenhuma instrução, mas que só, com o auxílio divino – assim se diz e se crê –
foste o nosso libertador (...)”.
Não irei, óbvio, sequer
resumir o enredo da peça. No caso, não me importam as circunstâncias que
levaram Édito a matar o pai, Laio (cuja paternidade desconhecia) e nem a
casar-se com Jocasta, a mãe. Meu foco é a descrição de Sófocles da epidemia que
assolava Tebas, tão terrível, ou mais, do que a esfinge, da qual nosso herói
(ou anti-herói?) a livrou antes. Recomendo ao leitor que leia essa magnífica
obra, uma das sete (entre as 123 que o dramaturgo compôs) que escaparam incólumes
da destruição, para a satisfação dos que apreciam a boa literatura (as outras
seis são “Ajax”, “Antigona”, “As Traquínias”, “Electra”, “Filoctetes”, e ´”Édipo em Colono”). Só adianto que, para
salvar Tebas da peste que a assolava, Édipo enviou seu cunhado, Creonte, para
falar com o oráculo de Delfos. E este afirmou que a cidade só seria salva
depois que se expulsasse dela o assassino de Laio, o rei anterior. E este era o
infeliz herói criado por Sófocles. Ou seja, o próprio Édipo.
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