O cólera e o “Véu
pintado”
Pedro
J. Bondaczuk
As atuais epidemias
transmitidas pelo insidioso, e “odioso” mosquitinho Aedes Aegypti – porquanto
são pelo menos três doenças diferentes causadas por esse prolífico e resistente
inseto que se manifestam simultaneamente na atualidade em várias partes do País
– ainda não aparecem em nenhum romance ou conto, ou novela, ou enredo de teatro
ou de cinema, ou seja, na Literatura de
ficção brasileiros. Menos ainda no Exterior. Nenhum ficcionista, portanto,
recorreu ao tema, nem mesmo incidentalmente. Pelo menos é o que presumo. Não
conheço nenhum livro em que o zika vírus, ou a dengue com seus subtipos, ou o
chicongunia apareçam como “panos de fundo” de alguma história. Não garanto que
não existam. Mas... Todavia, tenho intuição que, se não houver mesmo nenhum
livro explorando, de alguma forma, o assunto,
mais cedo ou mais tarde haverá. Afinal, epidemias estão longe de serem
novidades em literatura de ficção, dados os naturais dramas que as cercam.
Hoje, por exemplo,
trago à baila um romance em que uma mortal doença (que não é nenhuma das
transmitidas pelo Aedes Aegypti, antecipo) aparece, posto que não como foco
central. Nem por isso, é menos importante no enredo. Aliás, entendo que é
essencial na história. Refiro-me ao livro “O véu pintado”, de William Somerset
Maugham, “apropriado” pelo cinema, já que teve três versões cinematográficas,
que no Brasil, pelo menos uma delas, teve o título de “O despertar de uma
paixão”. Prefiro o livro. A versão cinematográfica sofreu algumas modificações
que descaracterizaram o original de Maugham.A história é complexa e trata de
sentimentos e comportamentos os mais variados, trazendo à baila amor, desamor,
traição, vingança, dedicação ao trabalho, ideal etc.etc.etc.
A personagem central é
Kitty Fane. Ela é apresentada como mulher fútil, proveniente de abastada
família inglesa, cujo único objetivo de vida era o de se casar com um homem de
renome, com privilegiada condição social. Depois de vários namoricos
inconseqüentes, nenhum deles sério, a volúvel moçoila decide aceitar a proposta
de casamento de um promissor bacteriologista, Walter Fane, tímido de doer, por quem,
todavia, não sentia absolutamente nada. Este, contudo, era apaixonadíssimo por
Kitty, mas jamais ousou expressar-lhe seu sentimento. Casados, o biólogo
recebe, como missão, seguir para Hong-Kong, para realizar pesquisas de doenças
típicas da região. A esposa, claro, acompanha-o.
A mulher, fútil e
vazia, é incapaz de compreender o amor calmo e discreto de Walter. Não tardou,
pois, para se envolver com Charlie Townsend, alto representante do governo
inglês na China, com quem tem um caso. Mas Walter descobre a traição da mulher.
Como uma espécie de vingança, propõe (na verdade, intima) que a esposa adúltera
fosse, com ele, para Mei-tan-fu, miserável cidade interiorana de uma China
paupérrima, atrasada e humilhada pelas grandes potências, em que grassava mortal
epidemia, responsável pela morte, inclusive, do médico missionário que lá
atuara. Temendo pela vida, Kitty vê-se obrigada a seguir o marido, acabando por
encontrar algo de que não estava à espera e que mudaria a sua forma de ver a
vida: uma paz interior e uma alteração da sua visão do mundo e da sociedade. A
história passa-se na década de 20 do século passado.
A doença de que Maugham
trata é o cólera, causado pelo vibrião colérico, bactéria em forma de vírgula,
que se multiplica rapidamente no intestino humano produzindo potente toxina,
que provoca diarréia intensa. Ao contrário da dengue e de tantas outras
moléstias, não é transmitida por nenhum inseto ou animal. A enciclopédia
eletrônica Wikipédia resume assim como se dá a contaminação: “O Vibrio cholerae é transmitido
principalmente através da ingestão de água ou de alimentos contaminados. Na
maioria das vezes, a infecção é assintomática (mais de 90% das pessoas) ou
produz diarreia de pequena intensidade. Em algumas pessoas (menos de 10% dos
infectados) pode ocorrer diarreia aquosa profusa de instalação súbita,
potencialmente fatal, com evolução rápida (horas) para desidratação grave e
diminuição acentuada da pressão sanguínea”. E, consequentemente, com a morte. O
cólera afeta somente seres humanos. Dependendo das condições higiênicas, tende
a ser epidêmica.
O livro de William
Somerset Maugham teve três versões cinematográficas. A primeira foi rodada em
1934, estrelada por Greta Garbo. A segunda, foi filmada em 1957 e recebeu o
título, em inglês, de “The seventh sin”, tendo Eleanor Parker no papel de
Kitty. Finalmente a terceira, uma co-produção sino-norte-americana, data de
2006. Foi toda filmada em Guilin, na
região chinesa de Guangxi. E foi estrelada por Edward Norton e Naomi Watts. No
filme, Kitty acaba por se apaixonar pelo marido e, na cena de morte do
bacteriologista (enfim vencido pelo cólera), ambos pedem recíprocas desculpas
pelos erros que cometeram. No livro, nada disso acontece. A mulher, embora
admirando o idealismo do marido, não consegue amá-lo. Quanto às desculpas,
estas não ocorrem, pois Kitty encontra Walter já inconsciente, em coma, quase
morto e ouve dele apenas uma frase sumamente incoerente: “E foi o cão que
morreu”. Por esta e por outras, nesse e em tantos outros casos, prefiro sempre
a versão original criada pelo autor: a do livro.
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