Historiador grego com
rara capacidade de diagnóstico
Pedro
J. Bondaczuk
As referências
literárias às várias epidemias que já atingiram a humanidade, ao redor do
mundo, e que dizimaram multidões, são antiqüíssimas. Não são de caráter
ficcional e nem poderiam ser. Não, pelo menos, as narrativas muito antigas.
Estas antecedem ao próprio surgimento dos gêneros de ficção, hoje tão comuns,
em moda e fartamente disseminados, como o romance, o conto e a novela. Na
Antiguidade, quando o escritor queria narrar uma história, dessas que só
existiam em sua cabeça, recorria à poesia, único recurso de que dispunha para
tal. E, tempos mais tarde, passou a se utilizar de peças de teatro, atividade
que se tornou veículo de comunicação por excelência entre os gregos. Hoje,
esses autores (pelo menos boa parte deles) recorreriam ao romance, à novela ou
ao conto, dependendo da extensão de suas narrativas ficcionais.
Uma das referências
mais antigas que se conhece, a propósito de uma epidemia, foi feita por um
notável historiador. Refiro-me ao grego Tucidides, que viveu (e morreu) em
Atenas. Ele teria nascido por volta do ano 460 a.C e morrido ao redor de 400
a.C. Por que citei essas datas no condicional? Porque se torna impossível
determiná-las com exatidão, até por conta dos vários calendários adotados no
mundo ao longo do tempo. Sua citação consta no clássico “História da Guerra do
Peloponeso”, obra de grande fôlego, que resistiu ao tempo e ao esquecimento e
chegou até nós, posto que com várias traduções. Houve, inclusive, “traduções de
traduções”, o que nos permite até duvidar que as versões a que temos acesso
sejam, de fato (pelo menos em sua totalidade) a expressão exata, sem nenhuma
deturpação, acréscimo ou supressão, do que o historiador escreveu. Bem, pelo
menos a narrativa dele sobreviveu à destruição, ao contrário de tantas e tantas
obras de seus contemporâneos e mesmo de muitos dos que nasceram e viveram
séculos depois dele, o que é uma façanha.
Durante a Guerra do
Peloponeso, que por mais de cinquenta anos opôs atenienses e espartanos,
Tucidides informa que Atenas foi afetada por uma epidemia de peste bubônica
que, em ondas sucessivas, ao longo de quatro anos, dizimou, conforme seu
registro, pelo menos um terço da população da cidade-Estado. Bem, a lógica e o
bom senso indicam que não devemos tomar ao pé da letra essas cifras. O número
de vítimas da epidemia tanto pode ter sido bem menor, como ser muitíssimo maior
do que o registrado. Desconfio que a segunda hipótese esteja mais próxima da
realidade. Mas... Não creio que as condições da época permitissem a Tucidides,
que não era médico e que, mesmo que o fosse, os conhecimentos de então não lhe
permitiriam uma avaliação correta, favorecessem a exatidão.
Numa coisa, porém, o
historiador mostrou inusitado talento, que surpreenderia, até, os mais
perfeitos infectologistas e biólogos atuais: na descrição dos sintomas das
vítimas da doença. Esta, todavia, não confere com os sintomas da peste
bubônica, epidemia que ele achava que estava ameaçando Atenas. Sua meticulosa descrição
faz os especialistas deste século XXI suspeitarem que o surto, ou os surtos que
atingiram a cidade, descritos nos livros segundo e terceiro da “História da
Guerra do Peloponeso” (obra em oito volumes) devem ter sido ou de tifo, ou de
dengue hemorrágica, com maior probabilidade de que tenha sido esta última. Como
se vê, esse vírus traiçoeiro, que nos atormenta há mais de duas décadas, já
pode ter causado estragos tremendos na saúde dos atenienses do quinto século
antes do nascimento de Cristo.
Tentarei reproduzir da
melhor maneira possível a descrição feita por Tucidides dos sintomas que
afetavam os desesperados atenienses (a versão que tenho é em espanhol): “(...)
Em geral, as pessoas se sentiam afetadas de repente, sem nenhum sinal
precursor, estando, portanto, em boa saúde. Notavam-se intensos calores na
cabeça. Os olhos ficavam vermelhos e inflamados. No interior do corpo, a
faringe e a língua se tornavam sangrentas, a respiração irregular e o hálito
fétido. A estes sintomas, sucediam-se soluços e ronqueira. Pouco tempo depois,
a dor atingia o peito, acompanhada de uma violenta tosse. Quando a doença
atacava o estômago, provocava muitos transtornos, e se desencadeavam, com dores
agudas, todos tipos de evacuação de bílis (...)”.
Descrição nota dez! Mas
Tucidides prossegue em seu relato: “(...) Quase todos os doentes sofriam
enjôos, que não eram seguidos de vômitos, mas acompanhados de convulsões. Em
alguns, os enjôos cessavam imediatamente, em outros, duravam muito tempo. A
pele, quando tocada, não estava quente e nem lívida, mas avermelhada, com uma
erupção de bolhas e úlceras. Mas o corpo estava tão quente que não suportava o
contato da roupa e de tecidos mais finos. Os doentes ficavam nus e sentiam-se
tentados a mergulhar em água fria. Foi o que aconteceu com muitos, sem
vigilância, tomados de uma sede insaciável. Vários se jogaram em poços (...)”.
E eu acrescentaria o óbvio: “e morreram afogados”, ora, pois, pois...
Como se vê, Tucidides,
que não era médico e não tinha nenhuma noção de biologia, traçou um diagnóstico
magnífico, de causar inveja nos especialistas atuais e isso cinco séculos antes
do nascimento de Cristo, ou seja, há mais de três mil anos. Outro grande mérito
desse notável historiador foi o de ter notado que as pessoas que sobreviviam à
doença epidêmica eram poupadas em surtos posteriores do mesmo mal, ficando,
pois, imunizadas. Foi um conhecimento importante, que resultou, milênios
depois, na base, no conceito para a criação de vacinas e de vacinações em
massa. Como se vê, foi um gênio, destes raros, que surgem, apenas, de quando em
quando.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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