Wednesday, April 20, 2016

Romance com jeito de tratado filosófico

Pedro J. Bondaczuk

O livro “A peste”, de Albert Camus, embora se trate, digamos, tecnicamente, de um romance, extrapola, em muito, as características usuais deste gênero e pode ser considerado, sem nenhum exagero, como profundo estudo filosófico. Concordo com o mestre da Ciência da Literatura da UFRJ, Hudson dos Santos Barros, que detecta, nessa obra – que não deixa, destaque-se, de ser ficcional – três grandes eixos temáticos, apenas sugeridos, mas que se fazem presentes da primeira à derradeira página: a civilização, a cidade e o indivíduo. O leitor atento e inteligente é induzido, sem deixar de atentar para o enredo, a refletir sobre esses aspectos essenciais da condição humana. Muita gente equivoca-se em relação aos objetivos da ficção. Entende que esta serve, “apenas”, para narrar uma boa história, sem qualquer outra finalidade, ou seja, sem que sequer sugira, mesmo que remotamente, lições que podem (e devem) ser extraídas da narrativa. Literatura (seja qual for o gênero a que o escritor recorra, incluindo aí romance, conto, novela, peça teatral e roteiro de cinema) tem por objetivo não somente informar ou entreter, como tanta gente pensa. Esses aspectos são importantes sim, mas não devem ser os únicos.

Albert Camus lida, com naturalidade, com o absurdo, sem descambar para exageros e sem abusar de metáforas surreais, que mais confundem do que esclarecem o leitor quando esses abusos ocorrem. Afinal, se atentarmos bem, concluiremos que a própria vida (pelo menos a nossa, seres com a capacidade de raciocinar e de buscar objetivos em tudo) é absurda, mesmo em se tratando de experiência única (e que, com todos seus perigos e sofrimentos, reputo como privilégio). Sou suspeito para tratar desse autor, porquanto tenho a mesma visão dele sobre os reais objetivos da Literatura (e não importa o gênero a que venhamos a nos referir). Em 1957, no discurso que fez, em Estocolmo, em dezembro daquele ano, na cerimônia de recebimento do Prêmio Nobel que lhe foi concedido, Camus deixou isso claríssimo, ao analisar o papel do artista. Disse, na oportunidade, que sua tarefa “não é a de distrair o público, mas é a de comover o maior número possível de homens, oferecendo-lhes uma imagem privilegiada dos sofrimentos e das alegrias comuns”. E não é?!!!

O livro “A peste” foi escrito em 1941, mas publicado, somente, seis anos depois. O cenário, escolhido por Camus, para desenvolver sua história, ele conhecia muito bem. E não só por ser argelino. Em 1940, após a ocupação da França pelos nazistas, o escritor, sobretudo combativo jornalista, vinha sofrendo ameaças de prisão por parte dos invasores, em virtude de seus candentes artigos. Optou, na ocasião, por uma “retirada estratégica” e regressou à sua terra natal, a Argélia, então colônia francesa. E fixou-se, justamente, em Oran, cidade que viria a escolher para cenário de “A peste”. Esse porto argelino era, na oportunidade, muito diferente do que é hoje. Atualmente, conta com uma população estimada em pouco mais de um milhão de habitantes. É a capital da província do mesmo nome. Trata-se, pois, hoje, da segunda maior e mais importante cidade da Argélia. Na época, porém, era bem menor e menos importante.

Quando ocorre alguma epidemia em qualquer lugar, qual é uma das primeiras providências adotadas pelas autoridades sanitárias? A limitação no ir e vir dos habitantes, não é mesmo? Até para evitar contágio e a conseqüente propagação da doença. Foi o que aconteceu na Oran descrita por Camus. Houve, portanto, limitação da liberdade das pessoas. Hudson dos Santos Barros cita, em sua monografia “A civilização, a cidade e o indivíduo em A Peste de Albert Camus”, o seguinte trecho do livro “Microfísica do poder”, de Michel Foucault, a esse propósito:  “(...) A ordem responde à peste; ela tem como função desfazer todas as confusões: a da doença que se transmite quando os corpos se misturam; a do mal que se multiplica quando o medo e a morte desfazem as proibições. Ela prescreve a cada um seu lugar, a cada um seu corpo, a cada um sua doença e sua morte, a cada um seu bem, por meio de um poder onipresente e onisciente que se subdivide ele mesmo de maneira regular e ininterrupta até a determinação final do indivíduo, do que o caracteriza, do que lhe pertence, do que lhe acontece. Contra a peste, que é mistura, a disciplina faz valer seu poder que é de análise (...)”.

É genial a descrição das reações dos moradores de Oran face à súbita calamidade que se abateu sobre ela. Em circunstâncias como essa, cada habitante reage individualmente, pelo menos a princípio, preocupado, tão somente, com a própria segurança. É o instinto de sobrevivência que sobrepuja a razão. É o tal do “salve-se quem puder”. Não é assim que as pessoas reagem diante de qualquer catástrofe, não importa de que natureza? Claro que sim. Basta atentar para as reações da maioria após um devastador terremoto, ou um mortal tsunami, ou um catastrófico tornado ou outro fenômeno destrutivo qualquer. Foi assim que a população da Oran de “A peste” reagiu. “Não existe ninguém que pense nos outros e que se proponha a ajudar quem precise em desastres como este?”, perguntará o atento leitor. Sim, existe. E Camus levou isso em conta, destacando, porém, que foram raros os que pensaram e agiram com solidariedade. Eu diria: foram raríssimos.

Há, sim, (felizmente) quem se disponha a encarar o mal, seja de que natureza for, em nome de todos. Entre estes, o autor de “A peste”, apresenta o personagem Rieux, médico, que acredita, no fundo da alma, que é necessário lutar até o fim contra a mortal epidemia, por mais inglória, pela inutilidade, que essa luta pudesse ser. Na vida real, por exemplo, são inúmeros os “heróis” de ocasião, que emergem, subitamente, salvando milhares de vidas. E a questão nem é quantitativa. Quando salvam, digamos, apenas uma vida, seu gesto já é sumamente louvável.  Ao contrário do que possa parecer, Camus não se mostra pessimista em relação à calamitosa peste bubônica. Tanto que a vitória final cabe ao Dr. Rieux e aos outros (poucos) personagens que tiveram vergonha de sobreviver sozinhos e de serem, portanto, felizes só eles, contribuindo, assim, com suas ações, para a epidemia ser, enfim, vencida. Esse espírito é que é o grande trunfo da humanidade.


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