Romance com jeito de
tratado filosófico
Pedro
J. Bondaczuk
O livro “A peste”, de
Albert Camus, embora se trate, digamos, tecnicamente, de um romance, extrapola,
em muito, as características usuais deste gênero e pode ser considerado, sem
nenhum exagero, como profundo estudo filosófico. Concordo com o mestre da Ciência
da Literatura da UFRJ, Hudson dos Santos Barros, que detecta, nessa obra – que
não deixa, destaque-se, de ser ficcional – três grandes eixos temáticos, apenas
sugeridos, mas que se fazem presentes da primeira à derradeira página: a
civilização, a cidade e o indivíduo. O leitor atento e inteligente é induzido,
sem deixar de atentar para o enredo, a refletir sobre esses aspectos essenciais
da condição humana. Muita gente equivoca-se em relação aos objetivos da ficção.
Entende que esta serve, “apenas”, para narrar uma boa história, sem qualquer
outra finalidade, ou seja, sem que sequer sugira, mesmo que remotamente, lições
que podem (e devem) ser extraídas da narrativa. Literatura (seja qual for o
gênero a que o escritor recorra, incluindo aí romance, conto, novela, peça
teatral e roteiro de cinema) tem por objetivo não somente informar ou entreter,
como tanta gente pensa. Esses aspectos são importantes sim, mas não devem ser
os únicos.
Albert Camus lida, com
naturalidade, com o absurdo, sem descambar para exageros e sem abusar de
metáforas surreais, que mais confundem do que esclarecem o leitor quando esses
abusos ocorrem. Afinal, se atentarmos bem, concluiremos que a própria vida
(pelo menos a nossa, seres com a capacidade de raciocinar e de buscar objetivos
em tudo) é absurda, mesmo em se tratando de experiência única (e que, com todos
seus perigos e sofrimentos, reputo como privilégio). Sou suspeito para tratar
desse autor, porquanto tenho a mesma visão dele sobre os reais objetivos da
Literatura (e não importa o gênero a que venhamos a nos referir). Em 1957, no
discurso que fez, em Estocolmo, em dezembro daquele ano, na cerimônia de
recebimento do Prêmio Nobel que lhe foi concedido, Camus deixou isso
claríssimo, ao analisar o papel do artista. Disse, na oportunidade, que sua
tarefa “não é a de distrair o público, mas é a de comover o maior número
possível de homens, oferecendo-lhes uma imagem privilegiada dos sofrimentos e
das alegrias comuns”. E não é?!!!
O livro “A peste” foi
escrito em 1941, mas publicado, somente, seis anos depois. O cenário, escolhido
por Camus, para desenvolver sua história, ele conhecia muito bem. E não só por
ser argelino. Em 1940, após a ocupação da França pelos nazistas, o escritor,
sobretudo combativo jornalista, vinha sofrendo ameaças de prisão por parte dos
invasores, em virtude de seus candentes artigos. Optou, na ocasião, por uma
“retirada estratégica” e regressou à sua terra natal, a Argélia, então colônia
francesa. E fixou-se, justamente, em Oran, cidade que viria a escolher para
cenário de “A peste”. Esse porto argelino era, na oportunidade, muito diferente
do que é hoje. Atualmente, conta com uma população estimada em pouco mais de um
milhão de habitantes. É a capital da província do mesmo nome. Trata-se, pois,
hoje, da segunda maior e mais importante cidade da Argélia. Na época, porém,
era bem menor e menos importante.
Quando ocorre alguma
epidemia em qualquer lugar, qual é uma das primeiras providências adotadas
pelas autoridades sanitárias? A limitação no ir e vir dos habitantes, não é
mesmo? Até para evitar contágio e a conseqüente propagação da doença. Foi o que
aconteceu na Oran descrita por Camus. Houve, portanto, limitação da liberdade
das pessoas. Hudson dos Santos Barros cita, em sua monografia “A civilização, a
cidade e o indivíduo em A Peste de Albert Camus”, o seguinte trecho do livro
“Microfísica do poder”, de Michel Foucault, a esse propósito: “(...) A ordem responde à peste; ela tem como
função desfazer todas as confusões: a da doença que se transmite quando os
corpos se misturam; a do mal que se multiplica quando o medo e a morte desfazem
as proibições. Ela prescreve a cada um seu lugar, a cada um seu corpo, a cada
um sua doença e sua morte, a cada um seu bem, por meio de um poder onipresente
e onisciente que se subdivide ele mesmo de maneira regular e ininterrupta até a
determinação final do indivíduo, do que o caracteriza, do que lhe pertence, do
que lhe acontece. Contra a peste, que é mistura, a disciplina faz valer seu
poder que é de análise (...)”.
É genial a descrição
das reações dos moradores de Oran face à súbita calamidade que se abateu sobre
ela. Em circunstâncias como essa, cada habitante reage individualmente, pelo
menos a princípio, preocupado, tão somente, com a própria segurança. É o
instinto de sobrevivência que sobrepuja a razão. É o tal do “salve-se quem
puder”. Não é assim que as pessoas reagem diante de qualquer catástrofe, não
importa de que natureza? Claro que sim. Basta atentar para as reações da
maioria após um devastador terremoto, ou um mortal tsunami, ou um catastrófico
tornado ou outro fenômeno destrutivo qualquer. Foi assim que a população da
Oran de “A peste” reagiu. “Não existe ninguém que pense nos outros e que se
proponha a ajudar quem precise em desastres como este?”, perguntará o atento
leitor. Sim, existe. E Camus levou isso em conta, destacando, porém, que foram
raros os que pensaram e agiram com solidariedade. Eu diria: foram raríssimos.
Há, sim, (felizmente)
quem se disponha a encarar o mal, seja de que natureza for, em nome de todos.
Entre estes, o autor de “A peste”, apresenta o personagem Rieux, médico, que
acredita, no fundo da alma, que é necessário lutar até o fim contra a mortal
epidemia, por mais inglória, pela inutilidade, que essa luta pudesse ser. Na
vida real, por exemplo, são inúmeros os “heróis” de ocasião, que emergem,
subitamente, salvando milhares de vidas. E a questão nem é quantitativa. Quando
salvam, digamos, apenas uma vida, seu gesto já é sumamente louvável. Ao contrário do que possa parecer, Camus não
se mostra pessimista em relação à calamitosa peste bubônica. Tanto que a
vitória final cabe ao Dr. Rieux e aos outros (poucos) personagens que tiveram
vergonha de sobreviver sozinhos e de serem, portanto, felizes só eles,
contribuindo, assim, com suas ações, para a epidemia ser, enfim, vencida. Esse
espírito é que é o grande trunfo da humanidade.
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