Contextualização da
visita de Camus ao Brasil
Pedro
J. Bondaczuk
“O contraste mais
impressionante é fornecido pela ostentação de luxo dos palácios e dos prédios
modernos, com as favelas, às vezes a cem metros do luxo, agarradas ao flanco
dos morros, sem água nem luz, onde vive uma população miserável, negra e
branca. As mulheres vão buscar água no sopé dos morros, onde fazem fila, e
trazem de volta sua provisão em latas de alumínio, que carregam na cabeça como
as mulheres kabiles. Enquanto esperam, passam diante delas, numa fileira
ininterrupta, os animais niquelados e silenciosos da indústria automobilística
americana. Nunca o luxo e a miséria me pareceram tão insolentemente mesclados.
É bem verdade que, segundo um dos meus companheiros, ‘pelo menos, eles se
divertem muito’”.
Este parágrafo, pinçado
a esmo, traz as impressões de Albert Camus da cidade do Rio de Janeiro, então a
capital do País, em sua longa e estafante visita ao Brasil, em 1949. Consta do
seu livro “Diário de Viagem”. Nele está expressa, com contundente sinceridade,
o que ele achou do nosso país e do nosso povo. Embora possa ferir nosso
orgulho, expressa com realismo e crueza o que éramos então, e o que ainda somos
em vários aspectos. Chocaram-no, principalmente, como se depreende desse
parágrafo, os gritantes contrastes entre a opulência e a miséria. Note-se que,
apesar de economicamente São Paulo já ser a cidade brasileira de maior
importância, em termos internacionais (como, aliás, ocorre ainda hoje) o Rio de
Janeiro chamava mais a atenção.
O Brasil que Albert
Camus conheceu – e ele esteve em muitos lugares, e em tempo relativamente curto
– era, em termos de desenvolvimento, muito diferente deste de hoje. Se o de
hoje está longe do ideal, o de então era infinitamente pior. Os contrastes e
injustiças sociais, que atualmente ainda são tão gritantes e contundentes, na
ocasião raiavam ao absurdo. A população brasileira era estimada em 1949
(entendo que grosseiramente) em algo em torno de 49,5 milhões de habitantes,
sendo que cerca de 70% concentrados no campo. A distribuição territorial era
bem diferente da de hoje. O Brasil contava com 20 Estados, quatro territórios
(Guaporé, Acre, Rio Branco e Amapá), além do Distrito Federal. Brasília não
estava sequer em sonho do mais delirante idealista. Rodovias minimamente
transitáveis havia pouquíssimas. Talvez possam ser citadas, e com muita boa
vontade, apenas duas: A Via Dutra e a Anchieta. Viajar naquele país gigantesco
e vazio de então era uma aventura que poucos ousavam empreender.
Nas ruas das capitais
circulavam alguns automóveis, mas todos importados dos Estados Unidos, a
maioria sucatas, que se não viessem para cá, os norte-americanos encaminhariam,
certamente, ao ferro velho, e um ou outro mais “moderno”, defasado dois ou três
anos em relação aos que circulavam na terra de Tio Sam, estes propriedades das
pessoas abastadas, de nossa pífia e caricata elite (que então era
ridicularizada no exterior, por seu atraso e pela ostentação, de gosto
duvidoso). Albert Camus esteve, além do Rio de Janeiro, em São Paulo, na zona
do Vale do Ribeira, e em Salvador e no Recife. Cada uma dessas etapas merece
comentários próprios, a parte, por deixarem impressões diferentes no espírito
saudavelmente crítico do ilustre visitante.
Três anos antes de
viajar para a América do Sul e de passar 48 dias no Brasil, o escritor havia
visitado os Estados Unidos. Ali, teve recepções variadas. Despertou entusiasmo
entre os universitários, que o acolheram com respeito e admiração. Recorde-se
que ainda não havia publicado o livro que, no meu entender, o consagrou: “A
peste”. Mas as autoridades norte-americanas receberam-no com frieza e
desconfiança, porquanto suas idéias políticas não eram vistas com bons olhos
por ali. A tal “guerra fria”, que por décadas confrontou os Estados Unidos e a
União Soviética, estava começando a “esquentar” e por muito pouco não chegou a
“ferver”. Dois anos depois dessa visita de Camus aos EUA, em 1948, por muito
pouco o Bloqueio de Berlim não deflagrou uma terceira guerra mundial. Faltou
pouco, muito pouco, pouquíssimo para isso. E não eram segredos para ninguém as
idéias esquerdistas de Camus. Para as autoridades norte-americanas, portanto, o
escritor francês era “persona non grata”. Todavia, não era no Brasil.
Matéria relativamente
recente do jornal “O Globo” (se não me falha a memória, de 2013), informa: “Ainda a bordo do Campana, o navio que o
trouxe de Marselha, Camus deu entrevista a jornalistas brasileiros. Explicou
que a visita era uma iniciativa do governo francês e que também visitaria o
Chile e o Uruguai. A passagem pela Argentina estava ameaçada, já que uma de
suas peças fora censurada por lá. O escritor também falou sobre Sartre e o
existencialismo e contou que suas palestras no Brasil seriam sobre temas como a
crise moral na Europa e a literatura francesa. Evitou ainda comentar sua
atuação na Resistência Francesa. Por fim, confessou que, embora ‘A peste’
tivesse feito mais sucesso, seu livro preferido era ‘O estrangeiro’”.
Como se vê, há tanta
coisa a ser dita sobre a visita de Albert Camus ao Brasil e sequer completei a
mera contextualização do assunto. Tratarei dela com mais vagar, para o que
recorrerei a duas preciosas fontes, ambas matérias de jornais e não tão antigas
assim. Uma delas é a ótima abordagem da passagem do escritor pelo Recife, feita
pelo jornalista Paulo Goethe (que faz jus ao ilustre sobrenome, destaque-se),
publicada em 6 de novembro de 2013 no tradicional “Diário de Pernambuco”. Outra
é a não menos brilhante matéria, de André Pomponet, tratando da visita de Camus
à Bahia, publicada no jornal “Tribuna Feirense”, em fevereiro de 2002. Aguardem.
O assunto promete!!!
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