Friday, April 22, 2016

Contextualização da visita de Camus ao Brasil


Pedro J. Bondaczuk

O contraste mais impressionante é fornecido pela ostentação de luxo dos palácios e dos prédios modernos, com as favelas, às vezes a cem metros do luxo, agarradas ao flanco dos morros, sem água nem luz, onde vive uma população miserável, negra e branca. As mulheres vão buscar água no sopé dos morros, onde fazem fila, e trazem de volta sua provisão em latas de alumínio, que carregam na cabeça como as mulheres kabiles. Enquanto esperam, passam diante delas, numa fileira ininterrupta, os animais niquelados e silenciosos da indústria automobilística americana. Nunca o luxo e a miséria me pareceram tão insolentemente mesclados. É bem verdade que, segundo um dos meus companheiros, ‘pelo menos, eles se divertem muito’”.

Este parágrafo, pinçado a esmo, traz as impressões de Albert Camus da cidade do Rio de Janeiro, então a capital do País, em sua longa e estafante visita ao Brasil, em 1949. Consta do seu livro “Diário de Viagem”. Nele está expressa, com contundente sinceridade, o que ele achou do nosso país e do nosso povo. Embora possa ferir nosso orgulho, expressa com realismo e crueza o que éramos então, e o que ainda somos em vários aspectos. Chocaram-no, principalmente, como se depreende desse parágrafo, os gritantes contrastes entre a opulência e a miséria. Note-se que, apesar de economicamente São Paulo já ser a cidade brasileira de maior importância, em termos internacionais (como, aliás, ocorre ainda hoje) o Rio de Janeiro chamava mais a atenção.

O Brasil que Albert Camus conheceu – e ele esteve em muitos lugares, e em tempo relativamente curto – era, em termos de desenvolvimento, muito diferente deste de hoje. Se o de hoje está longe do ideal, o de então era infinitamente pior. Os contrastes e injustiças sociais, que atualmente ainda são tão gritantes e contundentes, na ocasião raiavam ao absurdo. A população brasileira era estimada em 1949 (entendo que grosseiramente) em algo em torno de 49,5 milhões de habitantes, sendo que cerca de 70% concentrados no campo. A distribuição territorial era bem diferente da de hoje. O Brasil contava com 20 Estados, quatro territórios (Guaporé, Acre, Rio Branco e Amapá), além do Distrito Federal. Brasília não estava sequer em sonho do mais delirante idealista. Rodovias minimamente transitáveis havia pouquíssimas. Talvez possam ser citadas, e com muita boa vontade, apenas duas: A Via Dutra e a Anchieta. Viajar naquele país gigantesco e vazio de então era uma aventura que poucos ousavam empreender.

Nas ruas das capitais circulavam alguns automóveis, mas todos importados dos Estados Unidos, a maioria sucatas, que se não viessem para cá, os norte-americanos encaminhariam, certamente, ao ferro velho, e um ou outro mais “moderno”, defasado dois ou três anos em relação aos que circulavam na terra de Tio Sam, estes propriedades das pessoas abastadas, de nossa pífia e caricata elite (que então era ridicularizada no exterior, por seu atraso e pela ostentação, de gosto duvidoso). Albert Camus esteve, além do Rio de Janeiro, em São Paulo, na zona do Vale do Ribeira, e em Salvador e no Recife. Cada uma dessas etapas merece comentários próprios, a parte, por deixarem impressões diferentes no espírito saudavelmente crítico do ilustre visitante.

Três anos antes de viajar para a América do Sul e de passar 48 dias no Brasil, o escritor havia visitado os Estados Unidos. Ali, teve recepções variadas. Despertou entusiasmo entre os universitários, que o acolheram com respeito e admiração. Recorde-se que ainda não havia publicado o livro que, no meu entender, o consagrou: “A peste”. Mas as autoridades norte-americanas receberam-no com frieza e desconfiança, porquanto suas idéias políticas não eram vistas com bons olhos por ali. A tal “guerra fria”, que por décadas confrontou os Estados Unidos e a União Soviética, estava começando a “esquentar” e por muito pouco não chegou a “ferver”. Dois anos depois dessa visita de Camus aos EUA, em 1948, por muito pouco o Bloqueio de Berlim não deflagrou uma terceira guerra mundial. Faltou pouco, muito pouco, pouquíssimo para isso. E não eram segredos para ninguém as idéias esquerdistas de Camus. Para as autoridades norte-americanas, portanto, o escritor francês era “persona non grata”. Todavia, não era no Brasil.

Matéria relativamente recente do jornal “O Globo” (se não me falha a memória, de 2013), informa:  “Ainda a bordo do Campana, o navio que o trouxe de Marselha, Camus deu entrevista a jornalistas brasileiros. Explicou que a visita era uma iniciativa do governo francês e que também visitaria o Chile e o Uruguai. A passagem pela Argentina estava ameaçada, já que uma de suas peças fora censurada por lá. O escritor também falou sobre Sartre e o existencialismo e contou que suas palestras no Brasil seriam sobre temas como a crise moral na Europa e a literatura francesa. Evitou ainda comentar sua atuação na Resistência Francesa. Por fim, confessou que, embora ‘A peste’ tivesse feito mais sucesso, seu livro preferido era ‘O estrangeiro’”.

Como se vê, há tanta coisa a ser dita sobre a visita de Albert Camus ao Brasil e sequer completei a mera contextualização do assunto. Tratarei dela com mais vagar, para o que recorrerei a duas preciosas fontes, ambas matérias de jornais e não tão antigas assim. Uma delas é a ótima abordagem da passagem do escritor pelo Recife, feita pelo jornalista Paulo Goethe (que faz jus ao ilustre sobrenome, destaque-se), publicada em 6 de novembro de 2013 no tradicional “Diário de Pernambuco”. Outra é a não menos brilhante matéria, de André Pomponet, tratando da visita de Camus à Bahia, publicada no jornal “Tribuna Feirense”, em fevereiro de 2002. Aguardem. O assunto promete!!!


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