Impressões de Camus do “país
da desmedida”
Pedro
J. Bondaczuk
“ (...) Às quatro da
manhã, um estardalhaço no convés superior me desperta. Saio. Ainda está escuro.
Mas a costa está muito próxima: serras negras e regulares, muito recortadas,
mas os recortes são redondos – velhos perfis de uma das mais velhas terras do
globo. Ao longe, luzes. Seguimos o litoral, enquanto a noite clareia, a água
mal estremece, fazemos uma grande manobra e as luzes agora estão diante de nós,
mas longínquas. Volto para o meu camarote (...)” Esta é a forma com que Albert
Camus inicia sua descrição da sua chegada à cidade do Rio de Janeiro, ponto
inicial de sua longa e estafante visita à América do Sul e, sobretudo, ao
Brasil, onde permaneceu por 48 dias, com uma pauta de compromissos capaz de
estressar e esgotar o mais pacato e resistente dos homens. Imaginem um sujeito
então doente (acabou tendo uma recaída da tuberculose) e com mais coisas a
fazer do que meramente jogar conversa fora com intelectuais e os que se julgavam
tal, sem que o fossem (a maioria, por sinal).
Mas, prossigamos na
leitura dessas suas primeiras impressões, que constam de seu livro “Diário de
viagem”. “(...) Quando torno a subir, já estamos na baía, imensa, um pouco
fumegante no dia que nasce, com súbitas condensações de luz, que são as ilhas.
A névoa desaparece rapidamente. E vemos as luzes do Rio correndo ao longo da
costa, o ‘Pão de Açúcar’, com quatro luzes no seu topo, e no mais alto cume das
montanhas, que parecem esmagar a cidade, um imenso e lamentável Cristo
luminoso. À medida que nasce a luz, vê-se melhor a cidade, espremida entre o
mar e as montanhas, estendida no comprimento, interminavelmente estirada. No
centro, prédios enormes. A cada instante, um ronco acima de nós: um avião
decola no dia nascente, confundindo-se, de início, com a terra, elevando-se
depois em direção a nós, passando por cima de nossas cabeças (...)”
O primeiro grande erro
de Albert Camus, em sua vinda para a América do Sul, foi viajar de navio, em
vez de se utilizar de avião. Por mais luxuosa e confortável que seja uma
embarcação (e nem parece que tenha sido o caso), é um trajeto irritantemente
moroso para quem venha para cá a trabalho, no caso o estreitamento de laços
culturais da França com os países visitados, e não para fazer turismo, ou seja,
a passeio. Há, entre outras coisas, a inevitável ansiedade pela chegada e pelos
compromissos a cumprir. Ademais, o mar não é para pessoas fragilizadas, como
era Camus, por sua recente doença. Otto Lara Resende, prefaciador da edição
brasileira do “Diário de Viagem”, revelou que o escritor francês chegou a
pensar em cometer suicídio durante a viagem. Chegou, portanto, ao destino, com
ânimo em baixa, para não dizer deprimido, completamente desanimado.
Outro erro de Camus foi
o fato de deixar a pauta de compromissos a cargo de terceiros. E estes
exageraram na dose, programando uma infinidade de homenagens, jantares,
palestras e todos os tipos de exibições artísticas características do Brasil
por todos os lugares que deveria passar. Mas as primeiras impressões do Rio de
Janeiro, ainda a bordo do navio, foram favoráveis, posto que sinceras e
realistas. Leiamos mais um trecho do seu relato desse seu encontro com a
“Cidade Maravilhosa”: “(...) Estamos no
meio da baía e as montanhas, à nossa volta, fazem um círculo quase perfeito.
Finalmente, uma luz mais sanguínea anuncia o raiar do sol, que surge por trás
das montanhas a leste, em frente à cidade, e começa a subir, num céu pálido e
fresco. A riqueza e a suntuosidade das cores que brincam sobre a baía, as
montanhas e o céu, fazem calar a todos, uma vez mais. Um instante depois, as
cores parecem as mesmas, mas é o cartão-postal. A natureza tem horror dos
milagres longos demais (...)”
Perfeita essa
descrição, como só um gênio, como ele, seria capaz de fazer. Essa primeira
impressão favorável do Rio de Janeiro começou a se dissipar tão logo pisou em
terra firme. Por exemplo, ficou chocado com o contraste entre o luxo e a
miséria, um praticamente ao lado do outro, no caso os nababescos palacetes de
então confrontados com a absurda e chocante precariedade das favelas, o que
comentei em texto anterior. E olhem que o Rio daquele tempo não tinha a
violência de hoje. Os morros não eram “terra de ninguém”, sob o domínio do
tráfico de drogas, como ocorre atualmente. O tráfego de veículos foi outro
aspecto que o impressionou bastante. Tanto que escreveu a respeito: “(...) Os
motoristas brasileiros ou são alegres loucos ou frios sádicos. A confusão e a
anarquia deste trânsito só são compensadas por uma lei: chegar primeiro, custe
o que custar (...)”. Imaginem o que diria hoje, com a quantidade de veículos
multiplicada por mil ou mais, em relação aos de 1949!
E o que dizer dos seus
contatos com alguns dos principais escritores e intelectuais brasileiros? Albert
Camus ficou divididíssimo a esse respeito. Alguns (presumo que a maioria) ele
detestou. Achou-os, para dizer o de menos, petulantes, chatos, arrogantes e
mal-educados. É verdade que simpatizou de imediato com um ou outro, como por
exemplo os poetas Manuel Bandeira e Oswald de Andrade, os quais alçou à
condição de “amigos”. E olhem que o Rio foi, apenas, a primeira escala de
longuíssima visita, nas quais esse tormento repetiu-se com infalível
freqüência. Para o professor Lourival Holanda, da Universidade Federal de
Pernambuco, esses encontros de Camus com a intelectualidade brasileira foram,
na verdade, “desencontros”. E explica por que: “(...) Ele ficou espantado com a
excessiva familiaridade (Seu Albert) e com a estupidez dos nossos tocando ‘La
vie em rose’ sem parar”. E o professor não inventou isso. Camus descreve essas
chateações em seu diário, que virou livro.
Eu havia pautado estes
comentários para serem redigidos em 2013, quando o mundo celebrou o centenário
de nascimento do escritor. Na oportunidade, porém, por uma série de razões, fui
adiando, e adiando e adiando a tarefa, até que o ano acabou e perdi o bonde da
história. Mas... nunca é tarde, não é fato? Cito isso não propriamente para me
penitenciar, mas para referir-me a um evento em particular que considero
oportuno pelo título que lhe foi dado. Foi uma exposição fotográfica, realizada
em São Paulo, em 2013, com imagens da visita de Camus ao Brasil. Sabem como a
mostra foi batizada? “O país da desmedida”!!!! Existe definição melhor do que esta
para esta nossa heterogênea república dos trópicos?!!!
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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