História secreta relata
pandemia de peste
Pedro
J. Bondaczuk
O escritor é Procópio
de Cesarea (não confundir com figura do mesmo nome, mártir cristão, canonizado
pela Igreja Católica como São Procópio de Cesarea). O livro? “História secreta
de Justiniano I”. Assunto: devastadora epidemia de peste bubônica que assolou
Bizâncio, a versão oriental do Império romano, cuja capital era Constantinopla.
Ano: 540 da nossa era. Essa obra, pouco conhecida e não muito divulgada, até
mesmo das escritas por esse ilustre historiador, publicada na França, em 1669
(não sei se tem versões em outros idiomas) é historicamente importante por se
tratar do primeiro registro escrito de uma pandemia. Em outros tantos textos
anteriores que chegaram até nós, a doença é apenas mencionada, não raro de
passagem, para completar o cenário em que os escritores situaram seus temas. A
epidemia em questão não ficou restrita a Bizâncio. Propagou-se por toda a
Europa meridional e durou praticamente um século (se não mais). Imaginem
quantas pessoas matou, levando em conta a absoluta ausência de recursos da
época, quando se desconheciam, até, as causas da peste! A quantidade de vítimas
fatais pode, apenas, ser grosseiramente estimada.
Prova de que determinadas
regiões européias foram assoladas por este flagelo é o relato feito pelo
escritor francês Gregoire de Tours que, em seu livro “Histoires” relatou que
por volta do ano 590, portanto 50 anos depois do início da epidemia em
Bizâncio, a peste dizimou multidões notadamente no Sul da Gália. Procópio de
Cesaréa focaliza seu relato em especial em Antioquia, mas sem deixar de citar o
que acontecia nas demais cidades do Império Bizantino. Isso faz todo o sentido.
Afinal, tratava-se da terceira mais populosa metrópole do mundo da época, a
maior povoação urbana do Oriente. Em termos mundiais, só perdia para Roma e
Alexandria. Tinha, no auge, população estimada em meio milhão de habitantes, o
que, então, era uma enormidade. Guardadas as devidas proporções, Antioquia
poderia ser comparada, em importância, a metrópoles atuais do porte de Nova
York, ou de Londres ou de Tóquio.
Procópio é considerado
pelos especialistas como o último historiador da chamada Antiguidade tardia.
Nasceu na cidade palestina de Cesarea, daí sua cidade natal ter sido
incorporada ao seu nome, como era o costume da época. Seus livros foram
escritos no idioma grego clássico, sendo que tomou, como modelo, os dois
maiores historiadores da Grécia antiga: Heródoto e Tucidides. Sua obra mais
famosa é a “História” do reinado de Justiniano I, em oito volumes, exaltando os
feitos do imperador, sem trazer uma única linha que o desmerecesse, ou seja,
sem nem mesmo insinuar os desmandos, crimes e atos de corrupção (que não foram
poucos) desse governante. Não foi, no entanto, como procedeu em “História
secreta” (que no original tinha o sugestivo título de “Anedokta”), cuja autoria
sempre negou (por razões compreensíveis, para evitar represálias e
retaliações), mas que ficou amplamente comprovada após sua morte.
Esse livro permaneceu
perdido por vários séculos até que foi descoberto (dizem que por acaso) na
Biblioteca do Vaticano (e ninguém nunca soube explicar como foi parar lá).
Flavius Petrus Sabbatius Justinianus, ou simplesmente Justiniano I, o Grande,
assumiu o poder em 1º de agosto de 527 e reinou por 38 anos, até sua morte, em
14 de novembro de 565. Originário de família humilde, caiu nas graças de seu
antecessor, por sinal seu tio, Justino I, a quem viria a suceder. Consta que
era “dominado” pela mulher, Teodora, ex-atriz e ex-prostituta, cuja descrição
de suas estripulias Procópio fez em detalhes, não poupando nada em seu livro.
Explica-se, pois, porque sempre negou ser o autor dessa obra. A grande ambição
de Justiniano era restabelecer a glória de Roma antiga. Até certo ponto,
conseguiu. Mas...
E onde entra a peste
bubônica nesta história? Bem, segundo o relato do historiador, a epidemia teria
começado após devastador terremoto que assolou a região. Ele descreve assim
essa sucessão de tragédias: “(...) Catastróficos tremores de terra assolaram
Antioquia, a primeira cidade do Oriente (...) Todas as cidades dos arredores
foram, naquela época, assoladas pelo terremoto e seus habitantes morreram quase
todos. Chegou a peste, que mencionei anteriormente, que dizimou pelo menos a
metade dos moradores. Tal foi a destruição que assolou a humanidade a partir de
quando Justiniano cobrou os impostos devidos ao governo e que se prolongou pelo
período da sua autoridade”. Ou seja, a pandemia não foi debelada, pelo menos,
até 565. E, de acordo com Gregoire de Tours, espalhou-se por toda a Europa
meridional e não havia sido controlada pelo menos por volta do ano de 590.
Este foi o primeiro
registro escrito que chegou até nós da ocorrência da peste bubônica, mas não
como epidemia, ou seja, restrita a determinadas cidades, como outros escritores
fizeram, porém em forma de “pandemia”, atingindo grande parte do mundo
conhecido de então (possivelmente a totalidade do Planeta). Foi uma das tantas
vezes em que essa letal doença – ainda não de todo extinta, posto que
controlada – ameaçou extinguir toda a espécie humana da face da Terra.
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