A dor de um sentimento
de rejeição
Pedro
J. Bondaczuk
O escritor português
Vergílio Ferreira – cujo centenário de nascimento é celebrado neste ano de 2016
– retrata, com grande fidelidade, em seu romance “Manhã Submersa” (que, se não
é autobiográfico, tem muito de sua experiência pessoal), como se sente um jovem,
quase criança, na faixa dos 12 anos de idade, face a separação da família para
encarar a vida em um internato. E não se tratava de nenhuma instituição
educacional com relativa liberdade para os internos. Longe disso! No caso dele,
foi o seminário da Diocese da Guarda, junto às Donas e ao Fundão, no interior
de Portugal, para onde foi enviado após uma peregrinação a Lourdes, onde a
disciplina era para lá de rígida, mais severa, até, do que a de qualquer
quartel.
Por que os seus tutores
agiram assim? Para livrar-se do garoto? Claro que não. Para entender a razão, é
preciso conhecer sua realidade familiar. A esse propósito, transcrevo o
seguinte parágrafo da análise feita do romance em questão pelo crítico
português Júlio Pinheiro, intitulada “O real e a ficção no ‘Manhã Submersa’ de
Vergílio Ferreira”: “O romancista nasceu numa aldeia e numa família
profundamente cristãs. Tinha uma tia religiosa, soror Eduarda e um tio padre
que foi pároco de Melo. Sua mãe era muito crente (...) como recordou o pároco de
Melo no funeral de Vergílio Ferreira. Seu irmão César, sepultado no dia
anterior, tinha uma fé simples e profunda muito louvada pelo pároco na missa
exequial do autor de Manhã Submersa. O ambiente que envolveu Vergílio na sua
meninice e adolescência estava marcado por tradições e sensibilidades
características do mundo cristão”.
É lícito de se supor,
pois, que a família acalentasse o sonho, e mais que isso, que nutrisse a
expectativa de que aquele pré-adolescente viesse a se tornar, um dia, um
sacerdote católico. Isso dava (e ainda dá) status. Quanto à vocação para a vida
religiosa, os parentes achavam que essa se manifestaria com sua vida no
seminário. Ademais, esse tipo de instituição, na primeira metade do século XX
(e creio que hoje não seja muito diferente) era considerado uma espécie de
“liceu dos pobres”. Ou seja, era um lugar em que pessoas de famílias sem
recursos poderiam ter a oportunidade de uma educação de primeira linha, mesmo
que nunca viessem a ser ordenadas. A maioria, aliás, jamais seguiu, na
sequência, a vidas religiosa.
Na época em que
Vergílio Ferreira foi internado, o seminário funcionava em um imóvel que tinha
sido uma antiga fábrica. No romance, a instituição é descrita como “um casarão
pobre, frio, com janelas rasgadas”. O escritor detalhou assim suas instalações:
“No rés-do-chão estava a cozinha, o refeitório e as salas de estudo com as
canteiras, o púlpito de vigilância e um olho na porta. No primeiro andar
encontravam-se as camaratas, a capela e uma enfermaria que em dia de tempestade
ficou destruída. Cá fora e do outro lado da estrada um jardim e para o lado da
encosta a fila de retretes, em frente, acocoradas sobre um rego de água,
desviada da ribeira que desce de Alcongosta e que ainda hoje corre entre
arbustos verdejantes”.
Convenhamos, não se
tratava de lugar acolhedor e muito menos atrativo para um garotinho de 12 anos,
que não conhecia absolutamente ninguém ali e que era desacostumado de qualquer
disciplina, quanto mais da que ali se impunha. Lá não havia amigos, bichos de estimação,
nada, rigorosamente nada de minimamente familiar. Tudo era tão incerto, tão
assustador, tão medonho e tão opressivo. Vergílio descreve assim, em “Manhã
Submersa”, aquele primeiro momento, que seria torturante para qualquer pessoa,
quanto mais para um pré-adolescente que não conhecia nada do mundo fora da sua
casa e mal havia entrado em contato com um mínimo de realidade: “Marcada a cama
de cada um, voltamos à sala de espera para recolher a bagagem Tivemos de ceder
a primazia aos mais velhos [...]. Sei que depois ainda fomos à Capela e nos
despimos, com um cerimonial esquisito, antes de dormirmos. Mas nessa altura,
pesado de sofrimento, um grande apelo final de silêncio e desistência subia
para mim desde as raízes da noite. E fechei os olhos. E adormeci”.
Não tardou para que a
saudade o atormentasse. Uma saudade profunda, angustiante, asfixiante e
onipresente. Ainda se houvesse um rosto familiar, um único, a inquietação e o
terror seriam um pouquinho atenuados. Mas... não havia nenhum. Só pessoas estranhas,
que lhe pareciam hostis e grosseiras e sem um pingo que fosse de compreensão.
Vergílio põe estas palavras na boca de seu alter-ego, o personagem Antonio
Borralho, a esse propósito: “E uma saudade densa caiu-me, como um peso, na
alma. E chorei longamente, um choro recolhido, só choro para mim. Chorei quanto
pude, até que a noite foi minha irmã e eu fui irmão da noite, um diante do
outro, calados e de mãos dadas. Então lembrei- me, por entre o pranto, de um
pequeno saco de figos que minha mãe me dera à despedida. Procurei-o na saca da
roupa, puxei-o para a cama. E o sabor deles, que me encheu a alma, trouxe-me a
presença de um carinho morto, [...]”.
Eu, que passei por
experiência semelhante (posto que não igual) revivo, na memória, todas as vezes
que me lembro da minha primeira internação, essa mesma angústia, incompreensão
e sentimento de rejeição descritos por Vergílio. A intensa saudade que então
senti das pessoas que sempre amei fizeram com que eu reagisse da mesmíssima
forma que Antonio Borralho reagiu, naqueles seus primeiros dias de seminário. A
diferença é que me consolei não com pequeno saco de figos dado pela mãe na
despedida, como ele, mas com um velho despertador que consegui esconder em
minha bagagem, que me lembrava o som familiar de casa, com seu monótono
tic-tac, que naquela altura soava-me como a mais bela e harmoniosa das músicas.
E justo eu que sempre tive ojeriza por espelhos e por relógios...
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