“Ressurreição” da
memória por conta do acaso
Pedro
J. Bondaczuk
O economista italiano
do século XVIII, Ferdinando Galiani, afirmou, em certa ocasião, em
indisfarçável tom de desabafo: “A imortalidade é apenas um terreno disputado ao
esquecimento, mas bem fracamente disputado”. Ele estava errado? Claro que não!!
Ele próprio, que no seu tempo foi celebridade, personalidade reconhecida e
citada nos meios econômicos, hoje está esquecido. Poucos sabem que sequer
existiu. Só tomei conhecimento de sua existência por puríssimo acaso. Quanta
gente (e levo a questão para a minha “praia”, a Literatura), não passou por
isso? Quantos escritores, famosos enquanto vivos, que todos acreditavam estar
“imortalizados” em suas obras, não foram completamente esquecidos? Quantos
foram os que não sobreviveram, sequer, a uma única geração após sua morte?
Alguns, contudo, contam com a ação positiva do acaso e, subitamente, acabam
“ressuscitados” (não fisicamente, óbvio).
É o caso do poeta
peruano César Vallejo. Até há mais ou menos três anos (não estou seguro quanto
ao tempo exato), jamais havia lido ou ouvido a mínima menção ao seu nome. E
quando ouvi, não me passou pela cabeça a mais remota suspeita que se tratasse
de um poeta e, mais do que isso, de um ícone da hispanidade, ombreado a um
Pablo Neruda e a uma Gabriela Mistral, mesmo não tendo um Prêmio Nobel de
Literatura em seu currículo, como essas duas glórias literárias chilenas. Soube
dele (aliás não propriamente dele, mas de seu nome), porque gosto de futebol e
busco estar informado sobre tudo o que ocorre neste que é o esporte das
multidões. Ouvi falar do time peruano “Club Deportivo Universidad César
Vallejo”, da cidade de Trujillo, que há três anos (se não estou enganado) iria
representar o Peru na Copa Libertadores da América (que, de fato, representou).
Curioso, como sou, quis
saber quem era essa pessoa que emprestara nome a esse time de futebol,
relativamente novo (fundado em 6 de janeiro de 1996 e que completou, portanto,
há alguns dias, vinte anos de fundação). Pensei, inicialmente, que se tratasse
de um dirigente esportivo. Ou, quem sabe, de um professor ilustre, já que nessa
cidade há uma universidade chamada assim e o tal time está vinculado a ela.
Nunca me passou pela cabeça, porém, que se tratasse de um poeta, e muito menos
com a importância que teve. Casualmente, um amigo sugeriu, na base de puro
palpite, que talvez fosse um escritor. Meio que por intuição, desconfiei que
pudesse ser um poeta, por que não?
Decidi conferir.
Acessei o site de Antonio Miranda, um dos mais completos espaços de poesia que
conheço tratando de autores brasileiros, hispânicos, africanos e vai por aí
afora. E... bingo! Acertei na mosca. Fiquei sabendo que o sujeito que dá nome
ao time que iria (ou irá) enfrentar o São Paulo na fase inicial da Copa
Libertadores da América, foi um poeta. E não um poeta qualquer, mas um
inovador, um mágico das palavras, um escritor que, se a exemplo do seu
conterrâneo Mário Vargas Llosa, ganhasse um Prêmio Nobel, ninguém iria
estranhar. Aliás, iria aplaudir. O acaso, portanto, pelo menos para mim (e
creio que para milhares e milhares de outras pessoas) tirou César
AbrahamVallejo Mendoza (nascido em Santiago de Chuco, no Peru, em 1892 e que
morreu em Paris, em 1938) do ostracismo a que estava injusta e estranhamente
relegado. Foi uma descoberta que não somente enriqueceu minha cultura
literária, mas proporcionou-me enorme prazer estético, pois tive, também,
acesso à sua bela poesia.
Antonio Miranda diz o
seguinte desse escritor: “César Vallejo é o grande poeta da hispanidade, talvez
o mais contido entre os mais produtivos — sem a excessividade magnífica de
Neruda, sem o radicalismo experimentalista de Huidobro. Genial em todas as suas
frases, desde Los Heraldos Negros (1919) e Trilce (1922), quando exercita um
modernismo com ressábios simbolistas e um certo hermetismo sensual e
auto-flagelador. Mas é na temporada européia, confrontando as correntes
revolucionárias desde o dadaísmo e o surrealismo que ele conjuga um certo
automatismo verbal com sua veia telúrica e social, executando um praxismo
frasístico com os paradoxos da reflexão crítica, às vezes prosaica e irônica”;
Antonio Miranda cita
esta deliciosa (e polêmica) indagação de César Vallejo: “O que há de mais
desesperador na terra, que a impossibilidade em que se acha o homem feliz de
ser infeliz e o homem bom de ser malvado?” A seguir, reproduz a paradoxal
resposta do poeta ao próprio questionamento: “Distanciar-se! Parar! Voltar!
Partir! Toda a mecânica social cabe nestas palavras”. E não cabe?! Entendo que
sim! Voltarei a tratar, oportunamente, César Vallejo, agora com relativo
conhecimento de causa, pois tive a oportunidade de ampliar minhas pesquisas
sobre sua vida e sua obra, consultando várias outras fontes.
Como sempre faço, ao
tratar de algum poeta, reproduzo, abaixo, um de seus poemas, em ritmo de prosa,
com tradução desse “expert” em poesia que é Antonio Miranda:
A violência das horas
“Todos
estão mortos.
Morreu
dona Antônia, a rouca, que fazia pão barato no burgo.
Morreu
o padre Santiago, a quem prazia que o saudassem os jovens e as moças,
respondendo-lhes indistintamente: “Bom dia, José! Bom dia, Maria!”
Morreu
aquela jovem loura, Carlota, deixando um filhinho de poucos meses, que logo
também morreu, oito dias depois da mãe.
Morreu
minha tia Albina, que costumava cantar tempos e modos de herança, enquanto
cosia pelos corredores, para Isidora, a criada de ofício, a honradíssima
mulher.
Morreu
um velho torto, seu nome nem lembro, mas dormia ao sol da manhã, sentado à
porta do amolador da esquina.
Morreu
Rayo, o cão de minha altura, ferido de uma bala perdida.
Morreu
Lucas, meu cunhado na paz das cinturas, de quem me lembro quando chove e não
resta ninguém em minha experiência.
Morreu
em meu revólver minha mãe, em meu punho minha irmã e meu irmão em minha víscera
sangrenta, os três ligados por um gênero triste de tristeza, no mês de Agosto
de anos sucessivos.
Morreu
o músico Méndez, alto e sempre bêbedo, que solfejava em seu clarinete toadas
melancólicas, a cujo modulado adormeciam as galinhas de meu bairro, muito antes
que o sol se fosse.
Morreu
minha eternidade e a estou velando”
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk.
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