A peste, como ler um
livro tão singular
Pedro
J. Bondaczuk
“A peste”, de Albert
Camus, é desses livros singulares que não podem ser lidos como se lê um romance
comum, sob pena de perder o que tem de melhor. É dessas obras que requerem uma
ou mais releituras, para não deixar escapar nada do que o autor pretendeu
transmitir, tanto explicitamente, quanto (e principalmente) nas entrelinhas.
Entre seus tantos méritos, um se sobressai: o de induzir o leitor à reflexão
que, de outra forma, provavelmente não faria. Lançado pela primeira vez, na
França, em 1947, pela Editora Gallimard, provavelmente foi escrito quando a
Segunda Guerra Mundial ainda estava em pleno andamento, ou logo após seu
término, deixando a Europa em escombros, num rastro de destruição e de morte
como nunca se viu na história do continente e, provavelmente, da humanidade.
Já li várias
interpretações, de renomados críticos e de filósofos quer sobre o verdadeiro
teor dessa obra e quer, até, sobre seu próprio gênero literário. Neste último caso,
por exemplo, para a grande maioria, apesar de despertar reflexão no leitor, a
propósito de temas como a morte, a liberdade, o medo, a revolta, a
solidariedade ou falta dela e sobre tantos outros conceitos, o livro tem que
ser classificado, apenas, como um romance bem escrito. Para outros, é obra de
cunho nitidamente filosófico-existencial, Outro grupo classifica-o como
alegoria política retratando todo regime totalitário e, particularmente, ao
nazismo. Já o sociólogo, crítico literário, semiólogo e filósofo francês,
Roland Barthes, em brilhante resenha que fez de “A peste” – suponho que na
década de 70, já que faleceu em 26 de março de 1980 – reproduzida no caderno
“Mais!” do jornal “Folha de S. Paulo” em 5 de janeiro de 1997, interpretou o
livro como uma “crônica”, a despeito de se tratar de ficção.
O ilustre analista
escreveu, a certa altura: “Isso quer dizer que todos os temas habituais do
romance – o homem, o amor ou o sofrimento – são vistos aqui através da
transparência e do distanciamento de uma história coletiva, acompanhada dia a
dia sem jamais se deixar penetrar por uma significação propriamente histórica.
A meio caminho entre a História e o Romance, “A peste'' poderia ainda ter sido
uma tragédia. Logo veremos que preferiu ser o ato de fundação de uma Moral”. Na
minha avaliação pessoal (claro que posso estar equivocado) o livro é tudo isso
simultaneamente. É para ser não somente lido (e relido, reitero), mas
analisado, estudado, refletido e comparado com outras obras do autor.
Concordo com o mestre
em Ciência da Literatura, Literatura Comparada, pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Hudson dos Santos Barros, quando afirma, em sua tese de
mestrado, intitulada “A civilização, a cidade e o indivíduo em A Peste de
Albert Camus”: “(...) Este trabalho visa mostrar como Camus permite uma
reflexão significativa sobre o assunto. Os personagens desse famoso jornalista
e escritor do cenário francês são pessoas em conflito com as conjunturas em que
vivem. Eles são seres revoltados e em busca da liberdade individual, são
pessoas sufocadas pela impossibilidade diante de uma realidade (ou realidades)
que não permite(m) ao indivíduo o exercício de sua vontade. Frente ao mundo e à
civilização, seus sentimentos, seus desejos e ações estão a mercê de forças que
não se podem controlar. Ao contrário, é a força da lei que controla, lei que
exerce seu poder tanto no plano político como nas ações que constroem a
identidade do sujeito (...)”.
O enredo se desenvolve
na pequena cidade argelina de Oran. Trata-se de localidade sem nada de
especial, onde a população leva vida monótona e sem brilho, como em tantas e
tantas outras cidadezinhas ou vilarejos espalhados pelo mundo. Os moradores têm
a mesma preocupação que qualquer habitante de comunidades com a mesma característica.
Ou seja, vivem para o trabalho e para, quando possível, economizar algum
dinheiro, para fortuitos investimentos ou mesmo para fazer frente a algum dos
tantos imprevistos que nos ocorrem sem nenhum aviso. Sua vida é rigorosamente
rotineira, inclusive em questões sentimentais. Como ocorre em qualquer lugar,
por exemplo, há casais, e não poucos, que vivem juntos por puríssimo hábito,
sem que haja nenhum sentimento especial que os vincule. Aliás, sequer pensam
nisso. Tocam suas vidinhas cinzentas e descoloridas, como se essa mútua
indiferença fosse a coisa mais natural do mundo. Não há espaço, ou se houver
esse é sumamente exíguo, para romances e devaneios. Albert Camus destaca, nas
primeiras páginas do livro: “Em Oran, como no resto do mundo, por falta de
tempo ou reflexão, somos obrigados a amar sem saber”.
Eis que, sem nenhum
aviso, algo de muito estranho se verifica na modorrenta cidade. Começam a
aparecer, praticamente do nada, ratos pretos agonizando. Primeiro às dezenas.
Depois, às centenas, aos milhares, intrigando a população. O pior vem a seguir.
As mortes passam a afetar, também, os moradores. O sentimento inicial é o de
espanto. O que estaria acontecendo? Qual o motivo de todas essas mortes,
inicialmente de ratos e posteriormente de pessoas? Haveria alguma explicação
lógica para o fenômeno? Qual? Ninguém sabia. Em vez da mortandade cessar,
todavia, ela se amplia mais e mais, envolvendo tanto roedores quanto humanos.
Foi quando o estarrecimento inicial deu lugar ao medo, ao pânico e, finalmente,
ao horror. Tardou, todavia, para que o inimigo invisível fosse identificado:
peste bubônica. As reações à epidemia é que são motivos de reflexão sobre o
comportamento das pessoas diante de algum extremo perigo que ameace a todos,
sem que ninguém fique livre. E é justamente isso que me proponho a analisar com
vocês nos próximos dias.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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