Tuesday, April 19, 2016

A peste, como ler um livro tão singular


Pedro J. Bondaczuk

A peste”, de Albert Camus, é desses livros singulares que não podem ser lidos como se lê um romance comum, sob pena de perder o que tem de melhor. É dessas obras que requerem uma ou mais releituras, para não deixar escapar nada do que o autor pretendeu transmitir, tanto explicitamente, quanto (e principalmente) nas entrelinhas. Entre seus tantos méritos, um se sobressai: o de induzir o leitor à reflexão que, de outra forma, provavelmente não faria. Lançado pela primeira vez, na França, em 1947, pela Editora Gallimard, provavelmente foi escrito quando a Segunda Guerra Mundial ainda estava em pleno andamento, ou logo após seu término, deixando a Europa em escombros, num rastro de destruição e de morte como nunca se viu na história do continente e, provavelmente, da humanidade.

Já li várias interpretações, de renomados críticos e de filósofos quer sobre o verdadeiro teor dessa obra e quer, até, sobre seu próprio gênero literário. Neste último caso, por exemplo, para a grande maioria, apesar de despertar reflexão no leitor, a propósito de temas como a morte, a liberdade, o medo, a revolta, a solidariedade ou falta dela e sobre tantos outros conceitos, o livro tem que ser classificado, apenas, como um romance bem escrito. Para outros, é obra de cunho nitidamente filosófico-existencial, Outro grupo classifica-o como alegoria política retratando todo regime totalitário e, particularmente, ao nazismo. Já o sociólogo, crítico literário, semiólogo e filósofo francês, Roland Barthes, em brilhante resenha que fez de “A peste” – suponho que na década de 70, já que faleceu em 26 de março de 1980 – reproduzida no caderno “Mais!” do jornal “Folha de S. Paulo” em 5 de janeiro de 1997, interpretou o livro como uma “crônica”, a despeito de se tratar de ficção.

O ilustre analista escreveu, a certa altura: “Isso quer dizer que todos os temas habituais do romance – o homem, o amor ou o sofrimento – são vistos aqui através da transparência e do distanciamento de uma história coletiva, acompanhada dia a dia sem jamais se deixar penetrar por uma significação propriamente histórica. A meio caminho entre a História e o Romance, “A peste'' poderia ainda ter sido uma tragédia. Logo veremos que preferiu ser o ato de fundação de uma Moral”. Na minha avaliação pessoal (claro que posso estar equivocado) o livro é tudo isso simultaneamente. É para ser não somente lido (e relido, reitero), mas analisado, estudado, refletido e comparado com outras obras do autor.

Concordo com o mestre em Ciência da Literatura, Literatura Comparada, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Hudson dos Santos Barros, quando afirma, em sua tese de mestrado, intitulada “A civilização, a cidade e o indivíduo em A Peste de Albert Camus”: “(...) Este trabalho visa mostrar como Camus permite uma reflexão significativa sobre o assunto. Os personagens desse famoso jornalista e escritor do cenário francês são pessoas em conflito com as conjunturas em que vivem. Eles são seres revoltados e em busca da liberdade individual, são pessoas sufocadas pela impossibilidade diante de uma realidade (ou realidades) que não permite(m) ao indivíduo o exercício de sua vontade. Frente ao mundo e à civilização, seus sentimentos, seus desejos e ações estão a mercê de forças que não se podem controlar. Ao contrário, é a força da lei que controla, lei que exerce seu poder tanto no plano político como nas ações que constroem a identidade do sujeito (...)”.

O enredo se desenvolve na pequena cidade argelina de Oran. Trata-se de localidade sem nada de especial, onde a população leva vida monótona e sem brilho, como em tantas e tantas outras cidadezinhas ou vilarejos espalhados pelo mundo. Os moradores têm a mesma preocupação que qualquer habitante de comunidades com a mesma característica. Ou seja, vivem para o trabalho e para, quando possível, economizar algum dinheiro, para fortuitos investimentos ou mesmo para fazer frente a algum dos tantos imprevistos que nos ocorrem sem nenhum aviso. Sua vida é rigorosamente rotineira, inclusive em questões sentimentais. Como ocorre em qualquer lugar, por exemplo, há casais, e não poucos, que vivem juntos por puríssimo hábito, sem que haja nenhum sentimento especial que os vincule. Aliás, sequer pensam nisso. Tocam suas vidinhas cinzentas e descoloridas, como se essa mútua indiferença fosse a coisa mais natural do mundo. Não há espaço, ou se houver esse é sumamente exíguo, para romances e devaneios. Albert Camus destaca, nas primeiras páginas do livro: “Em Oran, como no resto do mundo, por falta de tempo ou reflexão, somos obrigados a amar sem saber”.

Eis que, sem nenhum aviso, algo de muito estranho se verifica na modorrenta cidade. Começam a aparecer, praticamente do nada, ratos pretos agonizando. Primeiro às dezenas. Depois, às centenas, aos milhares, intrigando a população. O pior vem a seguir. As mortes passam a afetar, também, os moradores. O sentimento inicial é o de espanto. O que estaria acontecendo? Qual o motivo de todas essas mortes, inicialmente de ratos e posteriormente de pessoas? Haveria alguma explicação lógica para o fenômeno? Qual? Ninguém sabia. Em vez da mortandade cessar, todavia, ela se amplia mais e mais, envolvendo tanto roedores quanto humanos. Foi quando o estarrecimento inicial deu lugar ao medo, ao pânico e, finalmente, ao horror. Tardou, todavia, para que o inimigo invisível fosse identificado: peste bubônica. As reações à epidemia é que são motivos de reflexão sobre o comportamento das pessoas diante de algum extremo perigo que ameace a todos, sem que ninguém fique livre. E é justamente isso que me proponho a analisar com vocês nos próximos dias.


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