A peste na visão de um
Prêmio Nobel
Pedro
J. Bondaczuk
Ao tratar de “epidemias
como temas de ficção”, um autor tem que ser obrigatoriamente mencionado. E,
sobretudo, estudado. Não se trata, todavia, de um escritor qualquer. Longe
disso. Trata-se de ilustre ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, o de 1957,
pelo “conjunto de sua obra”. Refiro-me ao francês, nascido na Argélia, Albert
Camus. Já a partir desse aspecto de nacionalidade despontam os tantos e tantos
e tantos aspectos, no mínimo pitorescos, se não curiosos ou mesmo controversos
que cercam sua vida (e que cercaram, também, sua morte, até hoje, transcorridos
56 anos, envolvida em polêmica). É o tipo de personalidade que não se pode
tratar em um único texto, por maior que seja o poder de síntese do redator,
dada a complexidade de sua biografia, a riqueza de sua personalidade e o valor
literário e humano de sua extensa e originalíssima produção. Fazê-lo seria,
antes e acima de tudo, desperdiçar excelente assunto e assim manter o leitor
mal-informado.
Albert Camus explorou o
tema “epidemia” em dois livros, ambos clássicos em seus respectivos gêneros. E
não apenas clássicos do século XX, o que já seria notável façanha, mas de todos
os tempos. Não foi à toa que ele recebeu o Prêmio Nobel de Literatura. Esse foi
dos tais escritores cuja premiação se mostrava óbvia, favas contadas. Por mais
injustiças que a Academia Sueca pudesse (e possa) cometer (e tem cometido
inúmeras) jamais poderia deixar de premiar Albert Camus. E não deixou. O
primeiro livro em que o escritor trata do tema “epidemia” é o romance “A
peste”, de 1947, que muitos críticos consideram, mesmo em se tratando de obra
de ficção, como detalhada crônica do comportamento humano face tragédias como
essa, de doença contagiosa que dizima parcela considerável da população na
localidade em que se manifesta. Há quem considere esse romance uma espécie de
grande metáfora dos horrores da Segunda Guerra Mundial.
Outro livro que tem por
pano de fundo uma epidemia (a mesma do romance, por sinal, no caso a peste
bubônica) é a peça teatral, em três atos, “Estado de sítio” de 1948. Esses dois
trabalhos literários, de gêneros tão diferentes, mas com enormes similaridades,
merecem análises á parte, o que me proponho a fazer no devido tempo. Assim como
“A peste”, este livro também é metafórico. A metáfora, no caso, desta feita é
da guerra civil espanhola, que quase levou esse país à destruição. Para tratar
condignamente desse assunto, mesmo que seja necessário exercer ao máximo o
poder de síntese, a melhor estratégia é dividi-lo em quatro partes: o autor, o
romance “A peste”, a peça teatral “Estado de sítio” e a peste bubônica,
presente nos dois livros.
Albert Camus é desses
escritores cujas vidas, se não são mais interessantes que suas obras, rivalizam
com elas. São muitas as biografias escritas sobre ele, mas duvido que haja
alguma completa, que não tenha omitido algum episódio relevante do que foi,
pensou ou fez. Ele nasceu na costa argelina, numa cidade então chamada de
Mondovi (hoje denominada Dréan), em 7 de novembro de 1913. Ocorre que, então, a
Argélia era colônia da França. Apenas tornou-se país independente em 1962, dois
anos após a morte do escritor. Era normal, pois, que se sentisse francês (que
de fato foi), mesmo não nascendo na metrópole. A independência da Argélia foi
obtida após sangrenta guerra, iniciada em 1954, conflito que tive a
oportunidade de acompanhar pela imprensa. Confrontou guerrilheiros argelinos e
tropas francesas, apoiadas por colonos oriundos da França ou descendentes
diretos de franceses, chamados, pejorativamente, de “pieds-noirs”.
Albert Camus
praticamente não conheceu o pai. Lucien Auguste Camus também era francês
nascido na Argélia e foi morto, em 1914, na batalha do Marne, na Primeira
Guerra Mundial. O escritor tinha um ano de idade quando isso aconteceu. Sua
mãe, Catherine Helene Sintés, também nascida na Argélia, mas de família
procedente da ilha espanhola de Minorca, viu-se forçada a se mudar para Argel,
para o bairro operário de Belcourt, que se tornaria famoso durante a guerra de
independência por ter sido palco de dantesco massacre de muçulmanos por parte
de soldados franceses. A infância de Camus foi pobre, mas as lembranças que o
escritor tinha dela estavam longe de ser amargas, como, aliás, revelaria mais
tarde em alguns de seus livros.
Com muito sacrifício,
em virtude de problemas financeiros da família, que quase o levaram a abandonar
os estudos para se dedicar à profissão do tio, a de tanoeiro (em cuja oficina
chegou a atuar como aprendiz), conseguiu concluir os estudos, graduando-se em
Filosofia. Apesar de ser considerado (ainda é, por muitos) filósofo
existencialista, Camus nunca se considerou como tal. Dizia, com orgulho, que
era, sobretudo, jornalista. E, de fato, atuou com grande destaque na imprensa.
Aos 25 anos de idade, por exemplo, participou da fundação do jornal Alger
Republicain. Em 1939, meses antes do início da Segunda Guerra Mundial, mudou-se
para Paris. Sua saída da Argélia não foi pacífica. Deveu-se ao fato de haver se
indisposto com autoridades coloniais francesas. Camus escreveu uma série de
artigos, denunciando a maneira com que a população árabe era tratada. Para
livrar-se de complicações, foi aconselhado a deixar Argel. Na França,
colaborou, até 1947, com o jornal “Combat”. Atuou, também, como combatente na
Resistência durante o duro período de ocupação nazista, arriscando a vida em
muitas e perigosas missões. Mais tarde, teve, também, marcante atuação no
jornal “Paris-Soir”.
Esses são, apenas,
alguns escassos episódios da rica biografia de Albert Camus. Outros mais virão
à baila na sequência desta série de comentários. Mas o principal destaque, o
assunto de fundo destas considerações, serão seus livros, notadamente os dois
em que uma epidemia é utilizada como pano de fundo para os respectivos enredos:
o romance “A peste” e a peça teatral “Estado de sítio”, que muitos críticos
relacionam com a obra anterior (e o próprio escritor admite certa vinculação).
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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