Uma vilã inesquecível
Pedro
J. Bondaczuk
O escritor russo,
Fiodor Dostoievsky, é uma das figuras mais pitorescas, trágicas e humanas não
somente da Literatura mundial, mas também como indivíduo. O mínimo que se pode
dizer sobre seus livros é que eles são, todos, “intensos”. São carregados de
paixão em seus extremos, tanto para o bem quanto para o mal, tanto de amor
quanto de ódio. Creio ser desnecessária uma apresentação formal mais extensa
dele, porquanto muito já se escreveu a seu respeito e sobre sua obra,
pontilhada de tragédias (como, ademais, trágica foi sua vida). Entre seus
romances mais comentados (e mais apreciados) está “O idiota”, que ele escreveu
em Florença, em uma de suas tantas viagens pela Europa, para escapar do
implacável assédio de credores. Dostoievsky vivia sempre endividado, com a
corda no pescoço, nas mãos de agiotas, por causa do seu vício de jogo. Era um
perdedor nato. Deixou fortunas em vários cassinos europeus, notadamente de
Monte Carlo. Escrevi muito a seu respeito e considero, portanto, redundante
voltar a tratar de sua mirabolante biografia.
É do romance “O idiota”
que emerge a terceira mulher citada na série “Catorze personagens femininas
inesquecíveis”, organizada pelo site “Homo Literatus” (WWW.homoliteratrus.com).
E esta é Nastássia Filippovna. É a escolha do poeta Márcio Ahimsa, autor do
livro “Lobisomem pós-moderno” (em co-autoria com Adenildo Lima). Volto a lembrar – e o farei quantas vezes
julgar necessário – que a pesquisa do site reúne catorze especialistas em
Literatura, todos leitores compulsivos,
que têm que escolher apenas uma única personagem feminina que considere
inesquecível. E deve justificar sua opção.
Este, no entanto, é um
caso atípico. A personagem feminina inesquecível não é nenhuma heroína do
romance. Pelo contrário, é a vilã. Para situar o leitor no enredo, caso não
tenha lido o romance, informo que a trama começa quando o principal
protagonista da história, o príncipe Míchkin, de 27 anos de idade, retorna a
São Petesburgo, após permanecer vários anos em um sanatório na Suíça para
tratar de epilepsia. Recorde-se que Dostoievsky também era epiléptico.
Portanto, conhecia, como poucos, os efeitos dessa doença. O tema central da
trama é a problemática do indivíduo puro, superior, que por essas
características (que evidentemente são positivas), é, frequentemente, rotulado
pela imensa maioria, numa sociedade corrompida, como idiota. Ou seja, como um
sujeito, no mínimo, inadaptado.
O humanista e epilético
Míchkin, observe-se, é apresentado por Dostoievski como uma espécie de mescla
de Jesus Cristo e de Dom Quixote. Sua ilimitada compaixão choca-se brutalmente,
tanto com o desregramento mundano de Rogójin, a princípio seu amigo e, na
sequência, grande rival, quanto com a beleza enlouquecedora de Nastássia
Filíppovna. E ela é a figura inesquecível (e não só para Márcio Ahimsa, mas
também para o leitor atento e sensível). Mas não por suas supostas virtudes,
mas exatamente pelo contrário. Ela é o que se pode classificar sem sustos de
“anti-heroína”. Ou, mais especificamente, de vilã.
A bondade e o impacto
da sinceridade do príncipe revelam, de maneira explícita (e trágica) como em um
mundo obcecado por dinheiro, poder e conquistas, o sanatório acaba sendo o
único lugar apropriado para um santo. Conclui-se que loucos não são, propriamente,
os que são diagnosticados como tais, mas sim os que consideram normal esse
comportamento corriqueiro e generalizado da insensata competição por fortuna,
fama e poder, a obsessão de “levar vantagem em tudo” que se tem, mas que se
nega enfaticamente. O “bom” tornou-se sinônimo de “bobo”. É mais ou menos a
mesma mensagem que Machado de Assis deixou implícita em “O alienista”.
Nastássia corrompe-se à
medida que o tempo passa. Quando moça, era pessoa culta, gentil, de boas
maneiras e excelente índole, com rara presença de espírito. Todavia, muda
radicalmente seu modo de comportar-se à medida que os anos passam. Corrompe-se.
Torna-se maldosa e dissimulada. O bondoso e ingênuo príncipe Míchkin, todavia,
apaixona-se perdidamente, por ela, tão logo a vê pela primeira vez, na casa dos
Epantchin. Em virtude da morte trágica dos pais, Nastássia foi, ainda menina,
acolhida por Tótski, juntamente com a irmã, que viria a falecer pouco tempo
depois. Assim, a bela garota seria entregue a vários cuidados diferentes ao longo
da juventude. Concluída sua educação, tornou-se mulher consciente de sua beleza
e do efeito que ela causava sobre os homens.
Não tardou a descobrir
o grande poder de sedução que tinha e não relutou em lançar mão dele quando
surgiu oportunidade para tal. Ambicionava casar-se com Totski, que lhe daria
uma vida de luxo e riqueza, supunha, porém se frustrou. A partir do momento que
soube do pretenso casamento do homem com quem pretendia se unir (com uma das
Epantchin), tornou-se completamente diferente do que fora na mocidade. Foi como
se nascesse de novo, com nova índole. Encheu o coração e a alma de ódio, de
desejo de vingança, de falta de piedade com quem quer que fosse e, acima de
tudo, de implacável malvadeza.
Nastássia Filíppovna
não tem o menor escrúpulo em semear discórdia, separando o príncipe Michkin de
seu grande amigo, Parfion Rogojin, que por influência dela, se tornam grandes
rivais. Insinuando-se ora para um, ora para outro, ela faz com que ambos se
tornem competidores em disputa do seu amor. É, pois, a “vilã perfeita”:
impiedosa, dissimulada, fascinante, apaixonante até, porém destrutiva. Por tudo
isso finda por ser inesquecível. Mas... arrepiante. Márcio Ahimsi observa a seu
respeito: “Nastássia Filíppovna é, de certo modo, uma sombra de Maria Madalena,
assim como o personagem principal, príncipe Míchkin, o é de Jesus Cristo”. E
por que o poeta a escolheu, entre tantas personagens femininas da Literatura?
“Pela trajetória de abandono, pela veleidade de seus atos, pelo próprio
desprezo que nutria pelos homens e por si mesma”, concluiu. É o tipo de mulher
inesquecível, sim, mas cujo bem maior seria esquecê-la de vez. Mas... que não
se esquece...
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