Tuesday, September 15, 2015

Uma vilã inesquecível

Pedro J. Bondaczuk

O escritor russo, Fiodor Dostoievsky, é uma das figuras mais pitorescas, trágicas e humanas não somente da Literatura mundial, mas também como indivíduo. O mínimo que se pode dizer sobre seus livros é que eles são, todos, “intensos”. São carregados de paixão em seus extremos, tanto para o bem quanto para o mal, tanto de amor quanto de ódio. Creio ser desnecessária uma apresentação formal mais extensa dele, porquanto muito já se escreveu a seu respeito e sobre sua obra, pontilhada de tragédias (como, ademais, trágica foi sua vida). Entre seus romances mais comentados (e mais apreciados) está “O idiota”, que ele escreveu em Florença, em uma de suas tantas viagens pela Europa, para escapar do implacável assédio de credores. Dostoievsky vivia sempre endividado, com a corda no pescoço, nas mãos de agiotas, por causa do seu vício de jogo. Era um perdedor nato. Deixou fortunas em vários cassinos europeus, notadamente de Monte Carlo. Escrevi muito a seu respeito e considero, portanto, redundante voltar a tratar de sua mirabolante biografia.

É do romance “O idiota” que emerge a terceira mulher citada na série “Catorze personagens femininas inesquecíveis”, organizada pelo site “Homo Literatus” (WWW.homoliteratrus.com). E esta é Nastássia Filippovna. É a escolha do poeta Márcio Ahimsa, autor do livro “Lobisomem pós-moderno” (em co-autoria com Adenildo Lima).  Volto a lembrar – e o farei quantas vezes julgar necessário – que a pesquisa do site reúne catorze especialistas em Literatura, todos leitores compulsivos,  que têm que escolher apenas uma única personagem feminina que considere inesquecível. E deve justificar sua opção.

Este, no entanto, é um caso atípico. A personagem feminina inesquecível não é nenhuma heroína do romance. Pelo contrário, é a vilã. Para situar o leitor no enredo, caso não tenha lido o romance, informo que a trama começa quando o principal protagonista da história, o príncipe Míchkin, de 27 anos de idade, retorna a São Petesburgo, após permanecer vários anos em um sanatório na Suíça para tratar de epilepsia. Recorde-se que Dostoievsky também era epiléptico. Portanto, conhecia, como poucos, os efeitos dessa doença. O tema central da trama é a problemática do indivíduo puro, superior, que por essas características (que evidentemente são positivas), é, frequentemente, rotulado pela imensa maioria, numa sociedade corrompida, como idiota. Ou seja, como um sujeito, no mínimo, inadaptado.

O humanista e epilético Míchkin, observe-se, é apresentado por Dostoievski como uma espécie de mescla de Jesus Cristo e de Dom Quixote. Sua ilimitada compaixão choca-se brutalmente, tanto com o desregramento mundano de Rogójin, a princípio seu amigo e, na sequência, grande rival, quanto com a beleza enlouquecedora de Nastássia Filíppovna. E ela é a figura inesquecível (e não só para Márcio Ahimsa, mas também para o leitor atento e sensível). Mas não por suas supostas virtudes, mas exatamente pelo contrário. Ela é o que se pode classificar sem sustos de “anti-heroína”. Ou, mais especificamente, de vilã.

A bondade e o impacto da sinceridade do príncipe revelam, de maneira explícita (e trágica) como em um mundo obcecado por dinheiro, poder e conquistas, o sanatório acaba sendo o único lugar apropriado para um santo. Conclui-se que loucos não são, propriamente, os que são diagnosticados como tais, mas sim os que consideram normal esse comportamento corriqueiro e generalizado da insensata competição por fortuna, fama e poder, a obsessão de “levar vantagem em tudo” que se tem, mas que se nega enfaticamente. O “bom” tornou-se sinônimo de “bobo”. É mais ou menos a mesma mensagem que Machado de Assis deixou implícita em “O alienista”.

Nastássia corrompe-se à medida que o tempo passa. Quando moça, era pessoa culta, gentil, de boas maneiras e excelente índole, com rara presença de espírito. Todavia, muda radicalmente seu modo de comportar-se à medida que os anos passam. Corrompe-se. Torna-se maldosa e dissimulada. O bondoso e ingênuo príncipe Míchkin, todavia, apaixona-se perdidamente, por ela, tão logo a vê pela primeira vez, na casa dos Epantchin. Em virtude da morte trágica dos pais, Nastássia foi, ainda menina, acolhida por Tótski, juntamente com a irmã, que viria a falecer pouco tempo depois. Assim, a bela garota seria entregue a vários cuidados diferentes ao longo da juventude. Concluída sua educação, tornou-se mulher consciente de sua beleza e do efeito que ela causava sobre os homens.

Não tardou a descobrir o grande poder de sedução que tinha e não relutou em lançar mão dele quando surgiu oportunidade para tal. Ambicionava casar-se com Totski, que lhe daria uma vida de luxo e riqueza, supunha, porém se frustrou. A partir do momento que soube do pretenso casamento do homem com quem pretendia se unir (com uma das Epantchin), tornou-se completamente diferente do que fora na mocidade. Foi como se nascesse de novo, com nova índole. Encheu o coração e a alma de ódio, de desejo de vingança, de falta de piedade com quem quer que fosse e, acima de tudo, de implacável malvadeza.

Nastássia Filíppovna não tem o menor escrúpulo em semear discórdia, separando o príncipe Michkin de seu grande amigo, Parfion Rogojin, que por influência dela, se tornam grandes rivais. Insinuando-se ora para um, ora para outro, ela faz com que ambos se tornem competidores em disputa do seu amor. É, pois, a “vilã perfeita”: impiedosa, dissimulada, fascinante, apaixonante até, porém destrutiva. Por tudo isso finda por ser inesquecível. Mas... arrepiante. Márcio Ahimsi observa a seu respeito: “Nastássia Filíppovna é, de certo modo, uma sombra de Maria Madalena, assim como o personagem principal, príncipe Míchkin, o é de Jesus Cristo”. E por que o poeta a escolheu, entre tantas personagens femininas da Literatura? “Pela trajetória de abandono, pela veleidade de seus atos, pelo próprio desprezo que nutria pelos homens e por si mesma”, concluiu. É o tipo de mulher inesquecível, sim, mas cujo bem maior seria esquecê-la de vez. Mas... que não se esquece...


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