Tuesday, September 08, 2015

Shakespeare apaixonado


Pedro J. Bondaczuk

O cinema é excelente fonte de entretenimento. Certo? Certíssimo! Todavia, não pode ser considerado veículo de informação confiável, com o rigor que os fatos exigem. Esta sequer é sua finalidade. Menos rigoroso o cinema tende a ser quando trata de acontecimentos do passado. Sua falta de exatidão se multiplica exponencialmente, quanto mais antigo for o episódio que busque retratar (na verdade, dramatizar). Um bom filme exige, sobretudo, ação, embora não exclua necessariamente a reflexão, desde que colocada de forma pertinente na boca de personagens e que esteja inserida no contexto e não quebre a continuidade da narrativa.

Mesmo os melhores e mais consagrados romances, dos mais acatados escritores, nunca são levados à tela exatamente como seus autores os escreveram. É impossível! A linguagem e a técnica cinematográfica diferem das literárias. São duas formas de arte distintas, embora, às vezes, possam ser complementares. Nos filmes, há cortes, acréscimos, alterações, adaptações etc. de acordo com as necessidades de continuidade das filmagens que sequer passaram pela cabeça dos romancistas, autores das histórias originais que criaram, adaptadas pelos roteiristas.

Se isso acontece em ficção, imaginem quando se trata de levar à tela biografias, que exigem documentação que comprove a veracidade do que se está tratando e, mesmo tendo esta em mãos, e sendo farta e confiável, nem sempre expressa com exatidão o que o personagem fez ou foi! Quando muito, o filme pode dar, apenas, pálida idéia do que a personalidade biografada realizou e viveu. E olhem lá!!! Este longo preâmbulo vem a propósito da coprodução cinematográfica norte-americana-inglesa, datada de 1998, dirigida por John Madden, intitulada, no Brasil, de “Shakespeare apaixonado”. Nem preciso ressaltar que foi estrondoso sucesso de crítica e de público. Isso é do conhecimento de qualquer pessoa razoavelmente bem informada.

Esclareço, antes que me contestem, que não estou questionando a qualidade do filme. Esta é inegável. Afinal, não foi por acaso que conquistou sete estatuetas do Oscar, a maior premiação do cinema, a saber: Melhor Filme, Melhor Atriz (Gwyneth Paltrow), Melhor Atriz Coadjuvante (Judi Dench), Melhor Figurino, Melhor Direção de Arte, Melhor Canção Original e Melhor Roteiro Original. Questiono, isto sim, a “veracidade” da história. Muita gente com relativa experiência e bom conhecimento de Literatura, considera que aquilo de que o enredo trata aconteceu, de fato, e da maneira exposta. Não aconteceu!!! É fruto da imaginação dos roteiristas – o checo, naturalizado inglês, Tom Stoppard e o norte-americano Marc Norman – o que não lhes tira o mérito, mas, pelo contrário, somente o ressalta. Afinal, souberam ser convincentes.
        
Os próprios produtores do filme deixaram claro que se tratava de ficção, embora enfocando personagens que de fato existiram, ao categorizá-lo de “comédia romântica”. Sua finalidade, portanto, não foi a de trazer bombásticas revelações, baseadas em documentos, sobre a vida e a obra de William Shakespeare (até porque, estes são raros e imprecisos), mas de fazer a platéia rir. E fez! Talvez objetivasse fazer o expectador também se emocionar, (claro, quando fosse o caso). Nesse aspecto, se deram bem. Todavia, enfatizo (e reitero “n” vezes) que o objetivo dos roteiristas não foi o de lançar luz sobre a biografia do genial dramaturgo e muito menos o de dirimir dúvidas e pôr fim às inúmeras polêmicas em torno dessa figura carismática, mas tão misteriosa.

Nem Tom Stoppard – nascido na antiga Checoslováquia em 2 de julho de 1937 – e nem Marc Norman – natural de Los Angeles, na Califórnia, onde nasceu em 10 de fevereiro de 1941 – são biógrafos. Podem até conhecer a obra de Shakespeare (parte dela ou sua totalidade). Mas estão longe, a milhares de anos-luz de distância, de poderem ser considerados, mesmo que remotamente, pesquisadores dela e muito menos especialistas na matéria. Não são, sequer, críticos literários. Ambos são dramaturgos (como o bardo inglês foi) e roteiristas brilhantes. Tanto isso é verdade que ganharam o Oscar da categoria.

Embora o filme – que comentarei com mais vagar oportunamente - esbarre em atuações por vezes superestimadas, e que não raro caem na estereotipia, o tom certo de humor utilizado acaba por fazer de “Shakespeare Apaixonado” uma obra artística, no melhor sentido da palavra, pelo fato simplesmente de transpirar arte. Mas é ficcional e não documental. Insisto que se trata, apenas, de “comédia romântica” e nada além disso. O ponto alto do filme, pode-se dizer, é a forma como estimula a imaginação do espectador. Quem o assistiu, certamente ficou com a sensação de que aquela foi a verdadeira história por trás da lenda de duas das principais peças escritas por Shakespeare: “Romeu e Julieta” e “Noite de Reis”. Pode ter sido, como pode não ter. Embora convincente, é mera especulação. Para não deixar o leitor que não teve a oportunidade de assistir ao filme na mão, resumo, em poucas palavras, seu enredo.

William Shakespeare precisa escrever uma nova peça de teatro, uma história de amor com final trágico, mas está passando por uma fase tão comum para quem lida com redação de textos: a de um bloqueio mental, a tão temida “crise de criatividade”. Para se livrar do problema, somente uma musa inspiradora poderá ajudá-lo. Ao apaixonar-se por Lady Viola, o dramaturgo volta a ter inspiração. Aproveita o momento e escreve a peça “Romeu e Julieta”. Na época, mulheres não podiam interpretar papeis no teatro. E o que a musa de Shakespeare faz para driblar essa proibição? Veste-se de homem. Lady Viola, por quem o dramaturgo se apaixonou, é noiva de um nobre, do Lord Wessex, dono de terras na Virgínia, á procura de dinheiro para voltar para os Estados Unidos. No final das contas, a Rainha Elizabeth I finda por autorizar a participação de mulheres no teatro. Tomou essa decisão após descobrir que Lady Viola se vestira de homem apenas para participar das peças de William Shakespeare.

Isso aconteceu mesmo e da forma relatada no filme? Sou capaz de jurar por todas as juras que não, embora milhões e milhões de pessoas ao redor do mundo, influenciadas por essa produção cinematográfica, acreditem, piamente, que sim. Se as pessoas acreditam até em Papai Noel, Coelhinho da Páscoa, duendes e outras dezenas de bobagens, por que não acreditariam nessa história, puríssimo fruto da imaginação de dois bons roteiristas, mas com aspecto de verossimilhança?!


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