Saturday, September 26, 2015

Personagem de uma “brasileira de coração”

Pedro J. Bondaczuk

A escritora Clarice Lispector é uma das grandes expoentes da Literatura brasileira contemporânea. Conseguiu conquistar, com seu talento e criatividade, o coração e a mente de um número imenso de leitores. Li inúmeras e espontâneas manifestações de seus admiradores nas redes sociais, muitas das quais expressando até veneração por ela. Mulher tenaz, de inteligência muito acima da média (falava sete idiomas e traduziu mais de 40 livros), Clarice destacou-se não somente nas letras, mas na vida: por sua garra, tenacidade e espírito de luta, que a levaram a enfrentar, e a superar, os vários percalços que encontrou em seu caminho. Foi uma vencedora. Soube encarar as circunstâncias desfavoráveis e modificá-las a seu favor. Admiro pessoas assim.

A esta altura, estou convicto que algum espírito de porco, desses que ficam à espreita dos redatores para detectarem o mínimo errinho que ele possa cometer, para ridicularizá-lo deve estar comentando, com alguma pessoa ao lado, a meu respeito: “Esse cara só escreve bobagem. Dessa vez, peguei-o. Será que não sabe que Clarice Lispector não era brasileira?!”  Pegou coisa nenhuma! Deu-se mal ao julgar meu texto apenas pelas primeiras linhas. Ademais, apesar da escritora haver nascido na cidade ucraniana de Chechelnik (em 10 de dezembro de 1920), era brasileira, sim. Brasileiríssima! Afinal, veio para o Brasil, com os pais, quando tinha somente dois anos de idade. Cresceu aqui. Absorveu nossa cultura e retratou-a como poucos. Isso sem falar que se naturalizou brasileira.

A esse propósito, aliás, lembro-me de um poema de Mário de Andrade, “O poeta come amendoim”, em que ele diz, em determinado trecho:

“(...)Brasil amado não porque seja minha
Pátria,
Pátria é a casa de migrações e do
Pão nosso onde Deus der...
Brasil que eu amo porque é ritmo do
Meu braço aventuroso
O gosto dos meus descansos
O balanço das minhas cantigas
Amores e danças.
Brasil que eu sou porque é minha
Expressão muito engraçada,
Porque é meu sentimento
Pachorrento,
Porque é meu jeito de ganhar
Dinheiro...”.

E não é?! Mas meu tema de hoje não é propriamente a biografia de Clarice Lispector, sobre a qual pretendo tratar oportunamente. É sobre uma das personagens que ela criou: a nordestina (alagoana) Macabea, protagonista feminina do romance “A hora da estrela”, publicado em 26 de outubro 1977, o último livro que escreveu e publicou. Ele foi escrito todo à mão, em diversas tiras de papel, a partir das quais a escritora, com a providencial ajuda da sua secretária Olga Borelli, compôs a versão final. Foi posto à venda pouco antes de Clarice ingressar no hospital do INPS da Lagoa, no Rio de Janeiro, onde viria a falecer, em 9 de dezembro de 1977, um dia antes de completar 57 anos de idade;   

Pois Macabea é a décima primeira mulher citada na série “Catorze personagens femininas inesquecíveis”, organizada pelo site “Homo Literatus” (WWW.homoliteratrus.com). É a escolha de Stephanie (Sté) Spengler, professora, escritora e graduada em letras. Felicíssima indicação!! Nunca é demais lembrar, já que a leitura é rotativa, que a pesquisa do site reúne catorze especialistas em Literatura que têm que escolher apenas uma única personagem feminina que considere inesquecível com a respectiva justificação. E Sté Spengler justificou assim sua oportuna opção:

“Através de Macabéa, podemos, assim como o narrador de A hora da estrela (Clarice Lispector, 1977), liberar o grito de horror a essa vida que tanto amamos. Datilógrafa virgem, vestia-se todos os dias de si mesma e representava, obediente, seu papel de ser. Não era idiota, mas carregava em seu peito a felicidade dos idiotas. A história dessa nordestina é uma pergunta. Com toda a sua ‘indiferença’ a si mesma (apenas vivia, inspirando e expirando), Macabéa desperta o leitor para o seu próprio eu. Afinal, a vida se resume a simplesmente existir (com uma pitada de não saber que, de fato, se existe) ou a questionar o mundo, buscando uma verdade explosiva e plena?”.

Para que o leitor, que não teve ainda o privilégio de ler “A hora da estrela”, não fique na mão, reproduzo a sinopse feita pela professora Cláudia Silveira, que encontrei em um site voltado para vestibulandos:

“O romance narra as desventuras de Macabéa, uma moça sonhadora e ingênua, recém-chegada do Nordeste ao Rio de Janeiro, às voltas com valores e cultura diferentes. Macabéa leva uma vida simples e sem grandes emoções. Começa a namorar Olímpico de Jesus, que não vê nela chances de ascensão social de qualquer tipo. Assim sendo, abandona-a para ficar com Glória (colega de trabalho de Macabéa), cujo pai era açougueiro, o que sugeria ao ambicioso nordestino a possibilidade de melhora financeira”.

E conclui: “Sentindo dores constantes, Macabéa vai ao médico e descobre que tem tuberculose, mas não conta a ninguém. Glória percebe a tristeza da colega e a aconselha a buscar consolo numa cartomante. Madame Carlota prevê um futuro feliz, que viria de um estrangeiro que ela conheceria assim que ela saísse daquela casa, homem louro com quem casaria. De certa forma, é o que acontece: ao sair da casa da cartomante, Macabéa é atropelada por uma Mercedes amarela guiada por um homem loiro e cai no asfalto onde morre”.

Poderia escrever, ainda, muita, muitíssima coisa sobre o romance, sobre a autora e sobre este e outros personagens, mas não farei. Pelo menos não hoje. Apenas destaco, para não passar batida, a história de Rodrigo S. M., o narrador do enredo, e a descrição do processo criativo (discurso metalinguístico) feito por este protagonista. Ele e Macabéa, “não fazem parte do mesmo espaço periférico”, como enfatiza a professora Cláudia Silveira. Ela, “por sua condição de retirante e aquele por ser visto com maus olhos pela classe média e não conseguir alcançar pessoas como Macabéa”. O livro foi adaptado para o cinema por Suzana Amaral, mas prefiro a versão original dessa que foi, sem favor algum, uma das principais escritoras (e brasileira sim, brasileiríssima!) da nossa Literatura de ficção.


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