Personagem intrigante
de um escritor genial
Pedro
J. Bondaczuk
O escritor irlandês
James Joyce é um dos mais geniais, complexos e marcantes da literatura mundial
de todos os tempos. É tido e havido como uma espécie de “guru”, de precursor,
de ícone do Modernismo na Europa. Pode ser classificado, por detratores, de
muitas coisas, menos de ser convencional. Nunca foi. Seu livro “Ulysses” é o
mais complexo, instigante e de difícil entendimento que já li. Boa parte dele
nem mesmo entendi. Pretendo fazer meticulosa, demorada e analítica releitura
dessa obra, que há décadas me desafia. Quando a fizer, certamente partilharei
com o leitor minhas conclusões (caso chegue a alguma). Por enquanto continuo
sem entender muita coisa, embora entenda o essencial. “Ulysses” não é livro
para ser comentado de afogadilho, como se comenta um desses tantos romances
“água com açúcar” que nada têm a nos acrescentar, mas apenas nos divertem (ou
nem mesmo isso).
Ler essa obra no
original (para quem é versado em inglês), já é magnífico feito. Requer profundo
conhecimento do idioma e extrema erudição. Imaginem, então, as dificuldades
para um tradutor! O texto está eivado, por exemplo, de diversos trocadilhos, de
jogos de palavras, de citações, de neologismos, de referências históricas e
literárias e vai por aí afora. Mas não é apenas isso. Joyce se utiliza de
estilos variados. O texto, ao fim e ao cabo, pode ser comparado, sem exagero
algum, a um complexíssimo quebra-cabeça literário. Para que o leitor tenha uma
idéia de quão difícil é entendê-lo, informo que o escritor valeu-se de mais de
30.000 palavras para redigir “Ulysses”!!! Para entender o que isso significa,
basta lembrar que uma pessoa sumamente culta se utiliza, exagerando muito, ao
longo de toda sua vida, em torno de 10 mil palavras do seu idioma, quando
muito. O cidadão comum se vale de entre 2.500 a 3.000 para se comunicar bem no
dia a dia. No entanto, Joyce utiliza 30 mil!!!
.
Pois é desse livro
absurdamente complexo e profundo que emerge a quarta mulher citada na série
“Catorze personagens femininas inesquecíveis”, organizada pelo site “Homo
Literatus” (WWW.homoliteratrus.com).
Trata-se de Mary Bloom, esposa do principal protagonista da trama, Leopold
Bloom, citada em 17 dos 18 capítulos desse livro tão desafiador. Ela é a
escolha do jornalista Walter Alfredo Voigt Bach, que, entre outras coisas
admiráveis, se mostra profundo conhecedor de “Ulysses”, a despeito de sua
complexidade, o que não deixa de ser grande façanha.
Lembro que a pesquisa
do site reúne catorze especialistas em Literatura que têm que escolher apenas
uma única personagem feminina que considere inesquecível. E deve justificá-la,
claro. E o que Walter diz sobre a figura que escolheu, em um universo de milhões
de possibilidades? Suas explicações são longas, porém convincentes: “No
Ulysses, de James Joyce, Molly é mencionada com frequência por Leopold, e por
longos dezessete capítulos ele é a única fonte de informação sobre ela. Parece
uma figura distante e quase inalcançável, embora muitos a conheçam de vista,
mas mesmo ouvindo tanto sobre Marion ela soa distante, até o décimo-oitavo
capítulo: Penélope. O capítulo conclusivo de Ulysses é todo Molly Bloom, cuja
mente é apresentada pela própria em um ritmo acelerado, como se ela estivesse
empilhando comentários prosaicos com alguém a ouvindo durante o preparo do
jantar. A vizinhança, as vidas se formando e deformando, os parentes e amigos
cujos hábitos por vezes a enjoavam, o marido, as ambiguidades ditas e desditas
Dublin afora, nada escapa da sinceridade devastadora da madame Bloom”, escreve
o jornalista.
E acrescenta: “E sem
querer, Molly Bloom proporciona um passeio pela pluralidade da alma humana,
amarrando explicações inconclusas durante Ulysses, apresentando uma história
dentro da principal simultaneamente enquanto a completa, fios amarrados de uma
história começada anos atrás, ao sentir um pulso. É ela quem conta: ‘e o
coração dele batia que nem louco e sim eu disse sim’”. De acordo com alguns
críticos literários contemporâneos (evidentemente, ultra-eruditos), essa
personagem é uma das mulheres mais vividas e, simultaneamente, mais misteriosas
do século XX, ao lado de Nástienka (de “Noites Brancas”, de Dostoievski) e de
Dolores Haze (de “Lolita”, de Vladimir Nabokov), É sumamente complicado, para
quem não leu determinado romance, apresentar algum personagem específico, ainda
mais se tratando de alguém tão enigmático e complexo, como Mary Bloom.
O "Ulysses",
de James Joyce, é uma espécie de paródia da “Odisseia” de Homero. A diferença é
que condensa a viagem de Odisseu (na pessoa do agente de publicidade Leopold
Bloom) em meras 24 horas. Ela começa no dia 16 de junho de 1904 e termina nas
primeiras horas da madrugada do dia seguinte. A mulher que corresponde a Molly
no livro de Homero é Penelope. A diferença principal entre as duas é que,
enquanto esta última mantém-se fiel a
Odisseu, enquanto este faz sua longa viagem, a personagem de Joyce tem um caso
com Hugh 'Blazes' Boylan depois de dez anos de celibato no casamento (pudera!).
Acho curioso o fato de
“Ulysses” ter sido proibido por autoridades de vários países, como Estados
Unidos e Inglaterra, por bastante tempo. E sabem por que? Apenas porque Joyce
descreveu, em diversos pontos, aspectos da fisiologia humana então considerados
impublicáveis. Como se vê, a burrice é democrática e universal. Acho
inacreditável que isso tenha acontecido, e em pleno século XX. Mas...
aconteceu. Hoje, esse mesmo livro é cultuado tanto nos países em que foi
proibido quanto em muitos outros. Foi criado, até, um chamado “Bloomsday”,
celebrado principalmente na Irlanda (mas não apenas lá), em todos os dias 16 de
junho, e há já bom tempo. Em Dublin, por exemplo, os fãs de “Ulysses” refazem o
percurso dos personagens Stephen Dedalus e Leopold Bloom pelas ruas da cidade
conforme foram descritas por Joyce. Até no Brasil há quem celebre, o
“Bloomsday”. Ele é celebrado na cidade gaúcha de Santa Maria (pelo que eu
saiba), há já 21 anos, desde 1994 .
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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