Thursday, September 17, 2015

Personagem intrigante de um escritor genial

Pedro J. Bondaczuk

O escritor irlandês James Joyce é um dos mais geniais, complexos e marcantes da literatura mundial de todos os tempos. É tido e havido como uma espécie de “guru”, de precursor, de ícone do Modernismo na Europa. Pode ser classificado, por detratores, de muitas coisas, menos de ser convencional. Nunca foi. Seu livro “Ulysses” é o mais complexo, instigante e de difícil entendimento que já li. Boa parte dele nem mesmo entendi. Pretendo fazer meticulosa, demorada e analítica releitura dessa obra, que há décadas me desafia. Quando a fizer, certamente partilharei com o leitor minhas conclusões (caso chegue a alguma). Por enquanto continuo sem entender muita coisa, embora entenda o essencial. “Ulysses” não é livro para ser comentado de afogadilho, como se comenta um desses tantos romances “água com açúcar” que nada têm a nos acrescentar, mas apenas nos divertem (ou nem mesmo isso).

Ler essa obra no original (para quem é versado em inglês), já é magnífico feito. Requer profundo conhecimento do idioma e extrema erudição. Imaginem, então, as dificuldades para um tradutor! O texto está eivado, por exemplo, de diversos trocadilhos, de jogos de palavras, de citações, de neologismos, de referências históricas e literárias e vai por aí afora. Mas não é apenas isso. Joyce se utiliza de estilos variados. O texto, ao fim e ao cabo, pode ser comparado, sem exagero algum, a um complexíssimo quebra-cabeça literário. Para que o leitor tenha uma idéia de quão difícil é entendê-lo, informo que o escritor valeu-se de mais de 30.000 palavras para redigir “Ulysses”!!! Para entender o que isso significa, basta lembrar que uma pessoa sumamente culta se utiliza, exagerando muito, ao longo de toda sua vida, em torno de 10 mil palavras do seu idioma, quando muito. O cidadão comum se vale de entre 2.500 a 3.000 para se comunicar bem no dia a dia. No entanto, Joyce utiliza 30 mil!!!   . 

Pois é desse livro absurdamente complexo e profundo que emerge a quarta mulher citada na série “Catorze personagens femininas inesquecíveis”, organizada pelo site “Homo Literatus” (WWW.homoliteratrus.com). Trata-se de Mary Bloom, esposa do principal protagonista da trama, Leopold Bloom, citada em 17 dos 18 capítulos desse livro tão desafiador. Ela é a escolha do jornalista Walter Alfredo Voigt Bach, que, entre outras coisas admiráveis, se mostra profundo conhecedor de “Ulysses”, a despeito de sua complexidade, o que não deixa de ser grande façanha.

Lembro que a pesquisa do site reúne catorze especialistas em Literatura que têm que escolher apenas uma única personagem feminina que considere inesquecível. E deve justificá-la, claro. E o que Walter diz sobre a figura que escolheu, em um universo de milhões de possibilidades? Suas explicações são longas, porém convincentes: “No Ulysses, de James Joyce, Molly é mencionada com frequência por Leopold, e por longos dezessete capítulos ele é a única fonte de informação sobre ela. Parece uma figura distante e quase inalcançável, embora muitos a conheçam de vista, mas mesmo ouvindo tanto sobre Marion ela soa distante, até o décimo-oitavo capítulo: Penélope. O capítulo conclusivo de Ulysses é todo Molly Bloom, cuja mente é apresentada pela própria em um ritmo acelerado, como se ela estivesse empilhando comentários prosaicos com alguém a ouvindo durante o preparo do jantar. A vizinhança, as vidas se formando e deformando, os parentes e amigos cujos hábitos por vezes a enjoavam, o marido, as ambiguidades ditas e desditas Dublin afora, nada escapa da sinceridade devastadora da madame Bloom”, escreve o jornalista.

E acrescenta: “E sem querer, Molly Bloom proporciona um passeio pela pluralidade da alma humana, amarrando explicações inconclusas durante Ulysses, apresentando uma história dentro da principal simultaneamente enquanto a completa, fios amarrados de uma história começada anos atrás, ao sentir um pulso. É ela quem conta: ‘e o coração dele batia que nem louco e sim eu disse sim’”. De acordo com alguns críticos literários contemporâneos (evidentemente, ultra-eruditos), essa personagem é uma das mulheres mais vividas e, simultaneamente, mais misteriosas do século XX, ao lado de Nástienka (de “Noites Brancas”, de Dostoievski) e de Dolores Haze (de “Lolita”, de Vladimir Nabokov), É sumamente complicado, para quem não leu determinado romance, apresentar algum personagem específico, ainda mais se tratando de alguém tão enigmático e complexo, como Mary Bloom.

O "Ulysses", de James Joyce, é uma espécie de paródia da “Odisseia” de Homero. A diferença é que condensa a viagem de Odisseu (na pessoa do agente de publicidade Leopold Bloom) em meras 24 horas. Ela começa no dia 16 de junho de 1904 e termina nas primeiras horas da madrugada do dia seguinte. A mulher que corresponde a Molly no livro de Homero é Penelope. A diferença principal entre as duas é que, enquanto esta última  mantém-se fiel a Odisseu, enquanto este faz sua longa viagem, a personagem de Joyce tem um caso com Hugh 'Blazes' Boylan depois de dez anos de celibato no casamento (pudera!).

Acho curioso o fato de “Ulysses” ter sido proibido por autoridades de vários países, como Estados Unidos e Inglaterra, por bastante tempo. E sabem por que? Apenas porque Joyce descreveu, em diversos pontos, aspectos da fisiologia humana então considerados impublicáveis. Como se vê, a burrice é democrática e universal. Acho inacreditável que isso tenha acontecido, e em pleno século XX. Mas... aconteceu. Hoje, esse mesmo livro é cultuado tanto nos países em que foi proibido quanto em muitos outros. Foi criado, até, um chamado “Bloomsday”, celebrado principalmente na Irlanda (mas não apenas lá), em todos os dias 16 de junho, e há já bom tempo. Em Dublin, por exemplo, os fãs de “Ulysses” refazem o percurso dos personagens Stephen Dedalus e Leopold Bloom pelas ruas da cidade conforme foram descritas por Joyce. Até no Brasil há quem celebre, o “Bloomsday”. Ele é celebrado na cidade gaúcha de Santa Maria (pelo que eu saiba), há já 21 anos, desde 1994 .


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