Personagem que custou
um processo ao seu criador
Pedro
J. Bondaczuk
O escritor nem sempre é
compreendido pelas pessoas do seu tempo, principalmente se é um inovador, quer
no estilo de que se utiliza, quer, e principalmente, na temática que aborda.
Ora choca os acomodados, os que não têm idéias novas, se recusa a tê-las e as
temem, por preguiça mental, por se recusarem a raciocinar. Ora esbarra na
burrice de alguns poderosos, que vêem no que escrevem aquilo que sequer foi
dito ou mesmo insinuado e que consideram ofensivo ou inadequado. Ora ofende a
suscetibilidade dos “moralistas de plantão”, normalmente corruptos e
hipócritas, que assumem a postura de implacáveis censores se o escritor abordar
determinados assuntos que lhes desagradem, considerados tabus, coisas que eles
praticam longe dos olhares públicos, mas que condenam de maneira acerba e feroz
quando trazidas à tona e expostas publicamente. E os motivos sucedem-se
interminavelmente, embora nenhum deles se sustente diante da mais elementar e
fria análise.
O francês Gustave
Flaubert – nascido em Rouen, em 12 de dezembro de 1821 e que faleceu em
Croisset, em 8 de maio de 1880 – foi uma das vítimas dos que não aceitam
opiniões contrárias ás suas. E não merecia, claro, o tratamento que recebeu da
burguesia (classe, aliás, a que pertencia). Foi
um prosador magnífico, que deixou sua marca nas letras do seu tempo,
sobretudo pelas análises psicológicas profundas dos contemporâneos através de
personagens marcantes, cheios de virtudes e defeitos, e portanto verossímeis,
em suma, humanos que criou. Foi um crítico implacável e lúcido do comportamento
social de uma França em ebulição política. Sua produção literária mais famosa,
a primeira obra-prima da ficção realista, escola de que foi o precursor, que
sobreviveu a tudo e a todos, foi “Madame Bovary”.
Por causa desse romance
– que lhe custou cinco anos de meticuloso e estafante trabalho intelectual,
publicado, inicialmente, em fascículos pela revista “Revue de Paris”, em 1857 e
só posteriormente em livro – o escritor
foi levado aos tribunais, acusado de ofensa à moral e à religião e, por muito
pouco, não foi parar na prisão. A causa alegada desse processo? A personagem
que criou, e que dá título ao romance: Emma Bovary. A dita protagonista foi
retratada como tendo procedimento moralmente inaceitável, que chocava,
sobretudo, a burguesa. Os que o processaram, todavia, se deram mal. Além de
Flaubert ser absolvido pela Sexta Corte Correcional do Sena, a ação gerou
tamanha celeuma na França, que despertou a curiosidade popular para o livro. E
em vez de ser banido, como seus censores pretendiam, tornou-se best-seller
mundial.
É impossível ler o
livro e permanecer indiferente em relação à personagem central, Emma Bovary. Os
moralistas detestam-na e a pintam com as cores mais sombrias e negativas
possíveis, por causa de seu adultério continuado e de sua conduta incompatível
com o que se esperava das mulheres da época. Já as pessoas que analisam os
fatos, antes de criticá-los, tentam entender suas motivações, mesmo que não
concordem com suas atitudes. Pois é essa Emma Bovary, tão inquieta e tão
polêmica, a nona mulher citada na série “Catorze personagens femininas
inesquecíveis”, organizada pelo site “Homo Literatus” (WWW.homoliteratrus.com).
Ela é a escolha de Nicole Ayres, graduada em Letras pela Universidade Estadual
do Rio de Janeiro. E é a própria especialista em Literatura que se nos
apresenta, que dá o seu original “cartão de visita”, nestes termos: “Apaixonada
pelas palavras, desde que aprendeu a ler e a escrever, não parou mais. Tem dois
projetos de romance e muitos projetos de vida. Adora a vida acadêmica. Adora a
vida. De espírito quixotesco, ainda vai aproveitar a experiência de suas
aventuras literárias para explorar o mundo. Mantém os pés no chão e a cabeça
nas nuvens”.
Como se vê, trata-se da
pessoa talhada para comentar sobre Emma Bovary e apresentar uma visão feminina
dessa protagonista do livro de Flaubert (amada e odiada por multidões, cada
qual por suas próprias razões), pela mente aberta que mostra ter. Lembro que a
pesquisa do site reúne catorze especialistas em Literatura que têm que escolher
apenas uma única personagem feminina que considere inesquecível, com as
respectivas justificativas. E Nicole justifica assim sua escolha: “A
personalidade complexa de Emma Bovary é belamente desenvolvida por Flaubert em
sua obra prima. Ao mesmo tempo sonhadora, delicada, culta e fascinante,
ambiciosa, dramática, egoísta e ingênua, Emma representa a classe burguesa
entediada, a mulher em cativeiro e as ilusões românticas. Incapaz de ser feliz
no amor, seja com o marido ou com os amantes, presa fácil de aproveitadores,
vítima de uma sociedade hipócrita e causadora de sua própria desgraça, a
personagem encontra em seu fim trágico mais do que uma punição, uma libertação,
simbolizando a queda do Romantismo, o massacre dos sonhos da juventude”.
Quem leu o livro de
Gustave Flaubert certamente irá concordar comigo de que a análise de Nicole, da
personalidade e das motivações de Emma Bovary, é perfeita. É clara, direta,
objetiva, sem preconceitos, sem rodeios ou subterfúgios e sem pruridos de falso
moralismo que permeava a França (e o mundo) de uma hipócrita visão moralista, o
na base do “faça o que falo, mas não faça o que faço”. Aliás, tal comportamento
ainda é mais do que comum nos dias de hoje. Ou estou exagerando? Esse não foi (infelizmente) o primeiro e
muito menos o último caso de censura a um clássico literário. Sequer preciso
citar quantos e quais livros enfrentaram idêntica oposição. Dezenas, centenas,
milhares de escritores brilhantes foram julgados (e alguns até condenados) sob
a alegação de “ofenderem a moral, a religião e os bons costumes”. Ora, ora,
ora. Arte não se censura.
Ainda recentemente, em
fins do século passado, tivemos o caso do escritor britânico, nascido na Índia,
Salman Rushdie, que foi “condenado à morte” pelos xiitas iranianos por causa de
seu romance “Versículos satânicos”. É fato que a sentença nunca foi
cumprida> Mas ela custou inúmeros contratempos e vexames a esse intelectual,
que teve que permanecer escondido por vários anos para escapar à sanha homicida
de fanáticos que acham que podem matar idéias. Estas, porém, são imortais. No caso da Literatura, o maior censor, o
único juiz habilitado a consagrar ou a levar ao fracasso determinada obra
literária e, por conseqüência, seu autor, é o leitor. Embora nem sempre justo,
ele, e apenas ele, tem a prerrogativa de determinar o que será best-seller e o
que será esquecido para todo sempre. Basta não comprar a obra que lhe pareça
contrária ao seu gosto e nada mais. Em suma: para mim, e para milhões de
leitores mundo e tempo afora, Emma Bovary é, sim, e sempre será, personagem
feminina inesquecível. Basta ler o livro de Gustave Flaubert para chegar de
imediato a esse lógico veredito!!!!
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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