Personagem de uma
geração perdida
Pedro
J. Bondaczuk
A década de 1920 do
século passado foi um período de inusitada prosperidade na economia e na
sociedade norte-americana. Milhões de pessoas enriqueceram do dia para a noite
e o dinheiro corria farto e solto, tanto o obtido por vias legais quanto pelas
ilegais, com o florescimento do crime organizado. Enquanto isso, a Europa
definhava. Tentava se recuperar, penosamente, dos horrores e da estúpida
destruição e carnificina da Primeira Guerra Mundial, já com a ameaça de uma
Segunda se desenhando no ar. Diz-se que
esse conflito foi altamente favorável aos Estados Unidos, que não tiveram
batalhas em seu próprio território e que pouco, ou quase nada, se envolveram
nele. Enquanto Inglaterra, França e, sobretudo, a Alemanha, entre outros, ainda
“sangravam”, e tentavam curar as feridas, em decorrência de uma das mais
estúpidas manifestações de violência da história, Tio Sam posava soberano e
prosperava sem parar.
Festas suntuosas – em
que a bebida rolava solta, a despeito da “lei seca”, enriquecendo poderosas
gangs urbanas – apinhadas de mulheres bonitas, porém frívolas, e de milionários
ociosos, ocorriam por toda a parte, e praticamente todos os dias do ano. Os
norte-americanos divertiam-se a valer, como se não houvesse amanhã, sem
preocupações com o futuro. Não por acaso, essa geração foi rotulada, anos mais
tarde, de “A geração perdida”. Tudo
isso, porém, durou relativamente pouco Na verdade, menos de uma década. Acabou
no fatídico 24 de outubro de 1929, que passou para a história como a
“Quinta-feira negra”, quando ocorreu o chamado “crash” da Bolsa de Nova York.
Num piscar de olhos, fortunas viraram fumaça. Milhares de milionários,
subitamente empobrecidos, chegaram ao extremo de dar cabo da vida. O sonho, finalmente, acabou, sucedido pelo
pesadelo de uma das maiores crises econômicas de todos os tempos, a Grande
Depressão, que não se restringiu apenas aos Estados Unidos, mas afetou o mundo
todo. Foi quando os norte-americanos tiveram que, finalmente, cair na real.
Um escritor retratou
muito bem esse período de prosperidade e de inconsciência social, anterior à
quebra da Bolsa. Foi F. Scott Fitzgerald (Francis Scott Kei Fitzgerald), com
seu romance “O grande Gatsby”. O livro foi publicado pela primeira vez em 1925
e foi imenso fiasco editorial. Vendeu algo em torno de 25 mil exemplares, se
tanto, o que, para os padrões norte-americanos, representava imenso fracasso de
vendas. Hoje, a realidade é muito diferente. O romance de Fitzgerald vem tendo
sucessivas reedições e continua vendendo milhões e milhões de exemplares, mundo
afora. O livro chegou a cair em completo esquecimento por décadas, até ser
reeditado, primeiro em 1945, e posteriormente, em 1953, quando, finalmente, foi
“descoberto” por uma multidão de leitores.
A quinta mulher citada
na série “Catorze personagens femininas inesquecíveis”, organizada pelo site
“Homo Literatus” (WWW.homoliteratrus.com)
é protagonista, justamente, de “O grande Gatsby”. É a bela, porém volúvel,
frívola, pérfida e manipuladora Daisy, posto que belíssima, que se vale de sua
estonteante beleza para conquistar (ou tentar fazê-lo) o que deseja. Ela foi
escolhida por uma pessoa que tem tudo a ver com a minha cidade (e comigo, posto
que, infelizmente, não a conheça pessoalmente), a professora e escritora
Cecília Garcia, formada em Letras e Linguística pela Unicamp e pós-graduada em
Jornalismo pela PUC-Campinas.
A pesquisa do site,
como o leitor já foi informado, reúne catorze especialistas em Literatura que
têm que escolher apenas uma única personagem feminina que considere
inesquecível, com a respectiva justificação. E Cecília justificou sua opção
muito bem. Escreveu: “É difícil falar de forma imparcial de Daisy, interesse
romântico de Jay Gatsby. Mimada, manipuladora e egoísta, ela usa sua beleza
para garantir que tudo seja feito do seu jeito. No entanto, a confissão que faz
a Nick Carraway, quando diz que torcia para que a filha fosse uma ‘bela
tolinha’, por que isso era o melhor que uma jovem poderia ser, não deixa de ser
uma cutucada”.
É uma personagem que a
gente pode reprovar, pode condenar, pode até mesmo, odiar, mas que é impossível
de esquecer. Enquadra-se, pois, perfeitamente no espírito da pesquisa do site.
Cecília diz mais sobre essa figura, que simboliza muitas mulheres da época:
“Daisy luta com os ardis que tem e tolera as infidelidades constantes de Tom
Buchanan, um marido perfeitamente respeitável pela sociedade, mas que pouco lhe
oferece. O próprio Gatsby a fez esperar por anos, deixando claro o quanto as
mulheres eram pouco agentes de suas vidas ainda no século 20. Mais do que amor
ou ódio, Daisy precisa de compreensão”. E eu acrescentaria: dos outros
personagens e também dos leitores.
A história passa-se em
Nova York e na cidade de Long Island durante o verão de 1922. Embora Fitzgerald
fosse fascinado por milionários, e os idolatrasse, sobretudo pelo glamour que
via neles, no fundo, no fundo, não se
conformava com o materialismo exacerbado e a falta de moral generalizada
daquela geração, que, na sua visão, eram claros sintomas de decadência social.
Seu romance pode ser interpretado como uma ostensiva crítica ao chamado
"Sonho Americano".
Hoje o livro – que teve
versão teatral, levada em cena na Broadway, e cinematográfica – é tido, com
justiça, como clássico literário mundial. "O Grande Gatsby"
tornou-se, inclusive, texto padrão em
todas as escolas superiores e universidades em todo o mundo que estudam a
Literatura norte-americana. A obra está classificada em segundo lugar no top
100 das melhores novelas do século XX. E Daisy é interpretada, hoje, não mais
pelos padrões parciais de meados da década de 1920 do século passado, mas pelos
atuais, quando as mulheres, vagarosa mas ininterruptamente, conquistam o espaço
que lhe é devido e que jamais deveria lhe ser negado, como o foi por milênios.
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