Friday, September 18, 2015

Personagem de uma geração perdida


Pedro J. Bondaczuk

A década de 1920 do século passado foi um período de inusitada prosperidade na economia e na sociedade norte-americana. Milhões de pessoas enriqueceram do dia para a noite e o dinheiro corria farto e solto, tanto o obtido por vias legais quanto pelas ilegais, com o florescimento do crime organizado. Enquanto isso, a Europa definhava. Tentava se recuperar, penosamente, dos horrores e da estúpida destruição e carnificina da Primeira Guerra Mundial, já com a ameaça de uma Segunda  se desenhando no ar. Diz-se que esse conflito foi altamente favorável aos Estados Unidos, que não tiveram batalhas em seu próprio território e que pouco, ou quase nada, se envolveram nele. Enquanto Inglaterra, França e, sobretudo, a Alemanha, entre outros, ainda “sangravam”, e tentavam curar as feridas, em decorrência de uma das mais estúpidas manifestações de violência da história, Tio Sam posava soberano e prosperava sem parar.

Festas suntuosas – em que a bebida rolava solta, a despeito da “lei seca”, enriquecendo poderosas gangs urbanas – apinhadas de mulheres bonitas, porém frívolas, e de milionários ociosos, ocorriam por toda a parte, e praticamente todos os dias do ano. Os norte-americanos divertiam-se a valer, como se não houvesse amanhã, sem preocupações com o futuro. Não por acaso, essa geração foi rotulada, anos mais tarde, de “A geração perdida”.  Tudo isso, porém, durou relativamente pouco Na verdade, menos de uma década. Acabou no fatídico 24 de outubro de 1929, que passou para a história como a “Quinta-feira negra”, quando ocorreu o chamado “crash” da Bolsa de Nova York. Num piscar de olhos, fortunas viraram fumaça. Milhares de milionários, subitamente empobrecidos, chegaram ao extremo de dar cabo da vida.  O sonho, finalmente, acabou, sucedido pelo pesadelo de uma das maiores crises econômicas de todos os tempos, a Grande Depressão, que não se restringiu apenas aos Estados Unidos, mas afetou o mundo todo. Foi quando os norte-americanos tiveram que, finalmente, cair na real.

Um escritor retratou muito bem esse período de prosperidade e de inconsciência social, anterior à quebra da Bolsa. Foi F. Scott Fitzgerald (Francis Scott Kei Fitzgerald), com seu romance “O grande Gatsby”. O livro foi publicado pela primeira vez em 1925 e foi imenso fiasco editorial. Vendeu algo em torno de 25 mil exemplares, se tanto, o que, para os padrões norte-americanos, representava imenso fracasso de vendas. Hoje, a realidade é muito diferente. O romance de Fitzgerald vem tendo sucessivas reedições e continua vendendo milhões e milhões de exemplares, mundo afora. O livro chegou a cair em completo esquecimento por décadas, até ser reeditado, primeiro em 1945, e posteriormente, em 1953, quando, finalmente, foi “descoberto” por uma multidão de leitores.       

A quinta mulher citada na série “Catorze personagens femininas inesquecíveis”, organizada pelo site “Homo Literatus” (WWW.homoliteratrus.com) é protagonista, justamente, de “O grande Gatsby”. É a bela, porém volúvel, frívola, pérfida e manipuladora Daisy, posto que belíssima, que se vale de sua estonteante beleza para conquistar (ou tentar fazê-lo) o que deseja. Ela foi escolhida por uma pessoa que tem tudo a ver com a minha cidade (e comigo, posto que, infelizmente, não a conheça pessoalmente), a professora e escritora Cecília Garcia, formada em Letras e Linguística pela Unicamp e pós-graduada em Jornalismo pela PUC-Campinas.

A pesquisa do site, como o leitor já foi informado, reúne catorze especialistas em Literatura que têm que escolher apenas uma única personagem feminina que considere inesquecível, com a respectiva justificação. E Cecília justificou sua opção muito bem. Escreveu: “É difícil falar de forma imparcial de Daisy, interesse romântico de Jay Gatsby. Mimada, manipuladora e egoísta, ela usa sua beleza para garantir que tudo seja feito do seu jeito. No entanto, a confissão que faz a Nick Carraway, quando diz que torcia para que a filha fosse uma ‘bela tolinha’, por que isso era o melhor que uma jovem poderia ser, não deixa de ser uma cutucada”.

É uma personagem que a gente pode reprovar, pode condenar, pode até mesmo, odiar, mas que é impossível de esquecer. Enquadra-se, pois, perfeitamente no espírito da pesquisa do site. Cecília diz mais sobre essa figura, que simboliza muitas mulheres da época: “Daisy luta com os ardis que tem e tolera as infidelidades constantes de Tom Buchanan, um marido perfeitamente respeitável pela sociedade, mas que pouco lhe oferece. O próprio Gatsby a fez esperar por anos, deixando claro o quanto as mulheres eram pouco agentes de suas vidas ainda no século 20. Mais do que amor ou ódio, Daisy precisa de compreensão”. E eu acrescentaria: dos outros personagens e também dos leitores.

A história passa-se em Nova York e na cidade de Long Island durante o verão de 1922. Embora Fitzgerald fosse fascinado por milionários, e os idolatrasse, sobretudo pelo glamour que via neles,  no fundo, no fundo, não se conformava com o materialismo exacerbado e a falta de moral generalizada daquela geração, que, na sua visão, eram claros sintomas de decadência social. Seu romance pode ser interpretado como uma ostensiva crítica ao chamado "Sonho Americano".

Hoje o livro – que teve versão teatral, levada em cena na Broadway, e cinematográfica – é tido, com justiça, como clássico literário mundial. "O Grande Gatsby" tornou-se, inclusive,  texto padrão em todas as escolas superiores e universidades em todo o mundo que estudam a Literatura norte-americana. A obra está classificada em segundo lugar no top 100 das melhores novelas do século XX. E Daisy é interpretada, hoje, não mais pelos padrões parciais de meados da década de 1920 do século passado, mas pelos atuais, quando as mulheres, vagarosa mas ininterruptamente, conquistam o espaço que lhe é devido e que jamais deveria lhe ser negado, como o foi por milênios.


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