Sunday, September 27, 2015

Personagem de um Dostoievski romântico e poético

Pedro J. Bondaczuk

O escritor russo Fiodor Dostoievski caracterizou-se pela criação de personagens no mínimo “intensos”. Quase todos os que criou são carregados de paixões extremas. São impulsivos, desses que num repente podem cometer (e cometem) crimes bárbaros (como em “Crime e castigo”), mas que são atormentados pela consciência, como ocorreu com o estudante que trucidou a velhinha nessa história. Outros tantos vivem situações igualmente conflituosas, como em “Irmãos Karamazov” e em vários e vários de outros enredos que criou, mesmo que não cheguem a extremos. Raramente, seus protagonistas são, sequer remotamente, parecidos com os da maioria dos escritores da sua época.

A quase totalidade da sua obra reflete a preocupação social que sempre o moveu, em uma Rússia tensa, miserável e com profunda divisão de classes. Um de seus romances mais belos, todavia, foge dessa linha temática. Nem parece que foi escrito por ele. Refiro-me a “Noites brancas”, que Dostoievski publicou em 1848, antes de ser preso e de enfrentar os horrores dos campos de trabalho forçado da Sibéria. Há consenso entre os especialistas de que é este livro o que mais o aproxima do romantismo. É de uma beleza pungente, posto que envolva também drama e solidão.     

Pois é justamente deste romance que emerge a décima segunda mulher citada na série “Catorze personagens femininas inesquecíveis”, organizada pelo site “Homo Literatus” (WWW.homoliteratrus.com). Ela é a escolha do escritor (autor do livro “Minha querida Aline”, publicado pela Editora Multifoco), fotógrafo e editor da revista “Sisifo”, o baiano Marcelo Vinicius. Como a pesquisa do site (que reúne catorze especialistas em Literatura) exige que os pesquisados escolham apenas uma única personagem feminina que considere inesquecível, e justifiquem a razão da preferência, ele escolheu Nástienka, justamente a protagonista de “Noites brancas”, e explicou assim a razão:

“O Sonhador a conhece e cria um amor platônico por Nástienka. Porém, mais do que isso, ela aponta para as imposições da vida, as quais não podem ser ignoradas, mas, ao mesmo tempo, nos diz que é preciso sonhar. Ela é jovem, ingênua e também sonhadora, que fica à espera de um prometido amor durante quatro noites. Nástienka é o símbolo da discussão sobre até que ponto as pessoas podem se esconder através de seus sonhos, para evitar o sofrimento. Mostra a contradição entre a vida real vazia e as suas paixões. Nástienka é uma mulher, com beleza e imperfeições como a vida, assinalando que todos nós somos o protagonista Sonhador: podemos encarar a vida ou virar o rosto em repúdio, mas nunca podemos negar sua pungente existência”.

Este livro requer pelo menos mais duas explicações da minha parte, até para que o leitor entenda a felicidade da escolha de Marcelo Vinicius. A primeira refere-se ao seu título. "Noite branca" é um fenômeno bastante comum na Europa, notadamente em regiões próximas ao Círculo Ártico (e também em São Petersburgo, claro, onde a história teria se passado). É quando, mesmo com o Sol se pondo no poente, ele permanece brilhando, posto que tenuamente, um pouco abaixo da linha do horizonte. O efeito causado é arrasador, no sentido de admiração, encantamento, diria de arrebatamento para quem não conhece de antemão essa característica e a testemunha pela primeira vez. A noite permanece clara, como num dia levemente nublado, por exemplo. Ou seja, ligeiramente  clara, como se fosse de uma lua cheia bem mais intensa do que a normal, causando uma atmosfera mágica, diria poética, de sonho. É belíssima e inesquecível.

Outro aspecto a se destacar refere-se à história engendrada por Dostoievski – que foi adaptada para o cinema por Luchino Visconti e recebeu diversos prêmios, protagonizada por Marcelo Mastroianni e Maria Schell – de um lirismo surpreendente para um escritor tão ácido e amargo, como o romancista russo. Ao longo de quatro noites, o protagonista conhece a moça, se apaixona por ela e cientifica-se de sua inusitada história. Ele e o leitor, claro.

Nástienka encara uma circunstância de vida das mais dramáticas e complicadas. Seu problema maior é a solidão. Tem que cuidar da avó cega, contando com a ajuda, somente, de uma criada surda. Ou seja, pouco ou nada pode se comunicar com as pessoas que a rodeiam no dia a dia. Numa  bela ocasião, todavia, recebe um novo inquilino em sua casa. Isso faz com que vislumbre a possibilidade de escapar de sua solidão. O misterioso homem, contudo, após algum tempo, vai embora, mas promete voltar depois de um ano, tão logo estivesse em condições de casar-se com ela. Passado exatamente um ano, na data marcada para o reencontro, o protagonista encontra Nástienka na ponte sobre o Rio Nieva. Mas nenhum dos três personagens – a moça, o tal inquilino e o Sonhador, apaixonado por ela – pode prever o que o destino reservou para eles. O que? Não, leitor, não contarei mais nada do enredo, para não estragar sua surpresa ao ler o livro, o que, óbvio, lhe recomendo.

Dostoievski é o único escritor a ter duas personagens diferentes incluídas nesta pesquisa informal do site “Homo Literatus”. Muitos brasileiros conhecem bem pelo menos esse romance, quer por sua leitura, quer através da televisão ou quer do teatro (sem falar do filme de Luchino Visconti).  A adaptação de “Noites Brancas”, por exemplo, foi exibida num Caso Especial da Rede Globo, em 1973, protagonizada por Francisco Cuoco e Dina Sfat, nos papéis principais, sob a direção de Oduvaldo Viana Filho. Não faz muito, essa obra foi levada aos palcos, em teatros de São Paulo e do Rio de Janeiro, estrelada por Débora Falabella e Luís Artur, sob a direção de Yara de Novaes. E quem a viu, se encantou. Pudera! Assim como quem leu esse clássico de Fiodor Dostoievski jamais esquecerá da obra e da sua sonhadora e aolitária personagem central.   


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