Lírio brotado em
pântano
Pedro J. Bondaczuk
Os personagens
considerados inesquecíveis – não importa se masculinos ou femininos – na
literatura ficcional de qualquer parte do mundo, raramente são os vilões.
Muitas vezes seus criadores até pretendem que sejam. Concentram toda sua
capacidade criativa e todas as expectativas neles, nesses sujeitos errados, violentos,
maldosos e tarados, de difícil criação. Em vão. Eles são lembrados, sim, mas
apenas incidentalmente. O leitor, á revelia do autor, elege, como personagens
centrais, automaticamente, os que chama de “mocinhos” (ou de “mocinhas”), os
que entende serem “heróis” dos enredos. São os protagonistas submetidos a toda
sorte de provações e sacanagens ao longo de toda a narrativa, mas que, ao final
dela, vencem tudo e todos e se dão bem. É verdade que nem todo romance tem
“happy end”. Os que não têm, todavia são raros e geralmente alvos de críticas e
restrições dos leitores.
Se os vilões da ficção
dificilmente se tornam inesquecíveis, imaginem os marginais, que são vítimas
das vítimas de qualquer sociedade! Imaginem personagens tão miseráveis e sem
qualquer perspectiva de vida que chegam, até, a serem “invisíveis” em sua
profunda indigência em qualquer cidade! Imaginem esses pelos quais se passa a
todo o momento pelas calçadas da vida, com olímpica indiferença, como se se
passasse diante de um poste, ou de uma parede, ou de outro objeto inanimado
qualquer e não de um ser humano! Convenhamos, personagens assim, tais como os
vilões, e que sejam minimamente verossímeis, sem nenhum exagero na descrição de
suas fisionomias e de suas atitudes, são complicadíssimos de se criar. A
maioria dos que são criados não passa de “caricatura” de uma pessoa. Se é mau,
é apresentado como o próprio protótipo da maldade. Se é miserável, é descrito
como traste sem alma e sem sentimento. Na vida real, todavia, as coisas não são
assim.
Jack Kerouac, porém,
criou uma personagem apaixonante, “Tristessa”, uma espécie de lírio brotado em
infecto e apodrecido pântano,
protagonista do romance (os norte-americanos o chamam de novela) de
mesmo nome, publicado pela primeira vez em 1960, diferente de tudo o que se
conhece. E consegue ser convincente. Prostituta, mulher sem eira e nem beira,
viciadíssima em morfina, esse farrapo humano que o escritor nos apresenta vive
(na verdade sobrevive) na Cidade do México. Poderia, pela lógica vigente na literatura,
ser, no máximo, figurante de alguma história. Kerouac, todavia, ousa fazer dela
a personagem central de seu livro, desses que se leem com os dentes rilhando de
revolta pelas injustiças da sociedade. E, na pele do poeta Jack, que se
apaixona perdidamente por ela, trata-a não somente com inusitado respeito, mas
com genuína e profunda paixão, raramente vista. O livro é, pois, primor de
prosa poética. A vida corrompida e corrupta de Tristessa é descrita, ao longo
da narrativa, não apenas com pungente ternura, mas com compreensão e com
incontida compaixão.
Subitamente, nos
esquecemos de sua degradação e nos apaixonamos por ela, que se torna, justa e
espontaneamente, a sétima mulher citada na série “Catorze personagens femininas
inesquecíveis”, organizada pelo site “Homo Literatus” (WWW.homoliteratrus.com).
Caso não relesse o livro de Kerouac, jamais me lembraria dessa figura decadente
e infeliz, se convidado a participar de uma pesquisa dessa natureza. Mas reli.
A obra mexeu comigo. O autor convenceu-me. E avalizo, portanto, sem pestanejar
a escolha, feita justamente pelo editor
e criador do site que a promoveu, Vilto
Reis. Além de idealizar e editar o excelente “Homo Literatus”, esse escritor
inédito, mas que pretende publicar seu primeiro romance, já concluído, ainda
neste ano, é apresentador do programa de televisão “LiteratusTV”, do podcast
“30MIN” e das séries de vídeos “QuestionBook” e “A Arte de Contar Histórias Por
Escrito”. É, portanto, superfamiliarizado com Literatura.
Lembro, pela enésima
vez, que a pesquisa do site reúne catorze especialistas em livros, notadamente
de ficção, que têm que escolher apenas uma única personagem feminina que
considere inesquecível, com a devida justificativa. Vilto justifica assim sua
opção: “Desequilibrada e viciada, Tristessa é uma das personagens mais
pulsantes e imprevisíveis da vasta cartela de personagens inexoravelmente
humanos criados por Jack Kerouac, autor de On The Road, entre outras obras. Na
novela que leva o nome da personagem, Tristessa é uma prostituta mexicana, uma
junkie decaída, buscando a todo momento descolar a próxima dose de morfina na
Cidade do México. Vale acrescentar que tudo que se sabe sobre Tristessa, pelo
leitor, é descrito pelo jovem poeta americano Jack, um apaixonado que eleva sua
linguagem ao nível do absurdo poético ao descrever esta prostituta”.
Observe-se que Kerouac
inspirou-se em uma figura real, de carne e osso, para compor o perfil de
Tristessa. Em 1955, ele apaixonou-se por uma prostituta índia, chamada
Esperanza, em uma de suas passagens pela capital mexicana, Não teve dúvidas em
se expor e em expor uma experiência pessoal que muita gente faria de tudo para
esconder, mas que ele não somente não esqueceu, como transformou em uma
obra-prima literária de extremo realismo. Produziu um romance triste, eivado de
ensinamentos budistas, numa comovente manifestação de compaixão, e não só pela
tragédia de Tristessa, mas por todo o sofrimento humano.
É certo que este não é
seu livro mais famoso e muito menos o mais lido. Perde, de longe, para “On the
Road”, popularizado pelo cinema, e que se tornou uma espécie de “Bíblia” dos
hippies. Mas é um romance que o leitor sensível e inteligente, que tenha a
oportunidade de lê-lo, jamais esquecerá. Tente e verá. E muito menos esquecerá
da infeliz e decaída personagem central, prostituta cuja única preocupação era
a de como obter a próxima dose de morfina e que, por um desses mistérios do
coração, se torna a paixão fulminante, incontrolável e, por isso, tragicamente
bela de um poeta.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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