Livro
perdido de Shakespeare
Pedro J. Bondaczuk
.
Fala-se, amiúde, em “elo perdido”
que, na teoria da evolução de Charles Darwin seria aquele momento em que
determinado animal, recém-adaptado à vida fora do mar, teria iniciado
prolongado processo de mutação que iria redundar, milhões de anos depois, no
homem. Se ele existe ou não é outra história. Creio que todos pelo menos já
ouviram falar nisso.
O raro, todavia, é alguém
referir-se a algum “livro perdido”. Pois isso, justamente, é, há pelo menos
dois séculos e meio, motivo de controvérsia entre críticos, historiadores e
outros especialistas em literatura, que se digladiam em torno da autoria de
determinada obra.
Para tornar a questão ainda mais
apimentada, a polêmica envolve não um escrevinhador qualquer, desses obscuros,
de província, mas um gênio. Aliás, é tão genial que, qualquer relação dos
melhores escritores de todos os tempos que não contiver seu nome já nascerá
morta. É considerado (com inteira justiça) o “poeta nacional” da Inglaterra e
os ingleses se referem a ele, carinhosamente, como “The Bard” (O Bardo). Você,
certamente, já matou a charada. Nosso personagem é ninguém menos do que William
Shakespeare.
Sim senhores. É ele mesmo. É esse
genial dramaturgo, que nos legou uma obra densa, profunda e copiosa. Só de
peças, das que se tem certeza que escreveu, são 38. Além disso, deixou-nos 154
sonetos, dois longos poemas narrativos e diversas outras poesias.
Sua obra é de estudo obrigatório
em todas as escolas de países de língua inglesa, nas aulas de Literatura. Da
mesma forma que no Brasil (e em Portugal), analisamos “Os Lusíadas”, de Luiz
Vaz de Camões (ou, pelo menos, era analisado nos meus tempos de estudante), os
livros de Shakespeare “são virados no avesso”,
na Inglaterra, Estados Unidos, Austrália, Nova Zelândia e vai por aí
afora.
Ainda assim, teme-se que boa
parte da sua obra tenha se perdido. Como é possível?! Não sei. Volta e meia,
aparecem novos livros, atribuídos a Shakespeare, a maioria grosseiras
falsificações, que não resistem a uma análise mais artificial. Suas principais
peças seguem sendo encenadas por companhias do mundo todo, amadoras ou
profissionais, em praticamente todas as semanas (e não acharia exagero se me
dissessem que o são todos os dias).
Quem não conhece, por exemplo,
“Romeu e Julieta”? Quem não leu a peça e não assistiu à sua representação no
teatro, deve ter visto sua versão cinematográfica. E se não viu, conhece, nem
que for por alto, o drama desses jovens apaixonados. Esses personagens são tão
conhecidos que há, até, uma sobremesa muito comum com o seu nome, envolvendo
queijo e marmelada (ou goiabada, ao gosto do freguês).
Muitos de nós, certamente,
vivemos a situação desse casal de apaixonados (posto que, felizmente, não com
seu trágico desfecho). Quantas pessoas já não se apaixonaram por alguma garota,
de família inimiga da sua? E Shakespeare tratou desse drama, tão comum, de
forma majestosa, poética, verossímil e bela.
Além de “Romeu e Julieta”, sua
peça mais conhecida, legou-nos preciosidades como “Hamlet” (tida pela maioria
dos críticos como sua obra-prima), “Sonho de uma noite de verão”, “A tragédia
de Júlio César”, “Rei Lear”, “Macbeth”, “Ricardo III”, “A megera domada”, “A
comédia dos erros”, “Henry V”, “Titus Andronicus” e vai por aí afora.
Como pode, pois, o autor dessas
obras tão geniais ter a autoria de algum livro contestada? Pois é, tem.
Trata-se de “Double falsehood”. É de Shakespeare? Não é de Shakespeare? O
especialista na obra desse gênio, Brean Hammond, acredita que pode, finalmente,
pôr fim à controvérsia. Trata-se de um dos maiores peritos em obras literárias
antigas e professor de Literatura da Universidade de Nottingham, na Inglaterra.
Sua conclusão, assegurando não só
a autenticidade do livro, mas sua autoria, foi divulgada em 16 de março, em
Londres, ao cabo de dez longos anos de análise. A matéria da Agência France
Press, que nos traz essa notícia, informa: “Em 1727, Lewis Theobald, editor
especializado em Shakespeare, assegurou que havia encontrado uma das três
cópias de uma obra perdida do dramaturgo, intitulada ‘Double falsehood or the
distrest lovers’. Os especialistas da época denunciaram a suposta falsidade
negando que Shakespeare tivesse algo a ver com essa obra. Mas, segundo Brean
Hammond, que se dedicou dez anos ao estudo de ‘Double falsehood’, não há
nenhuma dúvida que o texto leva a marca de Shakespeare”.
Trata-se, em resumo, de uma
tragicomédia que relata a rivalidade entre o malvado Henríquez e o bondoso
Julio pelas belas Violante e Leonora. Muitos podem estar se perguntando: como
teria acontecido o extravio dessa peça e por que ela não foi publicada na
época, quando Shakespeare era vivo? Afinal, ela veio a público, apenas, um
século depois da morte do dramaturgo.
As causas, convenhamos, podem ser
muitas. Só eu poderia citar, sem pensar muito, umas quatro ou cinco. Quem já
escreveu peça de teatro sabe que é muito fácil disso acontecer. Eu mesmo
escrevi uma, para ser representada na escola em que estudava, há coisa de
quarenta anos.
Durante os ensaios, várias falas
tiveram que ser mudadas para facilitar a performance dos atores. O texto
sofreu, pois, inúmeras rasuras. Para eventualmente publicá-lo, teria de
passá-lo a limpo, pois na época eu não contava com a moleza que se tem hoje, do
computador, que facilita tudo, para todo o mundo. Tinha que reescrever o texto
na unha
Depois que a peça foi encenada,
prometi a mim mesmo consolidar, finalmente, a redação definitiva, aquela que os
atores encenaram . O tempo foi passando, o rascunho foi mudando de gaveta, e eu
fui mudando de casa, de cidade, de Estado até que.... Lá um belo dia, quando me
dispus a, finalmente, passá-lo a limpo, cadê?! Não o encontrei nem com reza
brava. Felizmente, não sou nenhum Shakespeare. Portanto, não se perdeu nada que
valesse tanto, ou que sequer tivesse algum valor, não sei. Pode ser que dentro
de quarenta ou cinqüenta anos a tal peça reapareça por aí. Não pode ter
acontecido o mesmo com “The Bard”? Tenho convicção que sim.
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