Revisitando George
Orwell
Pedro
J. Bondaczuk
O ano de 1984, pelo
menos no aspecto literário, começou onze meses antes. “Mas como?”, perguntará,
atônito, o leitor. Isso mesmo. Um livro, publicado originalmente, em 1949, que
gerou intensa polêmica na ocasião do seu
lançamento, voltou à baila, no início de 1983, com várias republicações. Fosse
só isso, seria normal. Todavia, a obra em questão recebeu criticas à beça em
todas as mídias da época, e em muito maior quantidade do que quando foi lançada
originalmente e provocou intenso debate ideológico, o que sequer não me
surpreende, pois na ocasião a Guerra Fria estava em pleno andamento, muitas
vezes esquentando, perigosamente, e ameaçando alcançar o ponto de fervura.
Refiro-me ao romance “1984”, de George Orwell.
Na verdade, os debates
em torno desse livro nunca cessaram. Não, pelo menos, por completo. Ainda hoje,
volta e meia, retornam, mesmo que a pretextos diferentes daqueles da época do
seu lançamento, quando a Guerra Fria recém havia começado. Já em 1984, ano que
lhe deu o título, as superpotências de então (Estados Unidos e a extinta União
Soviética) ameaçavam se engalfinhar de vez, o que, se acontecesse, traria
conseqüências trágicas para a humanidade, provavelmente a extinção da espécie
humana, em decorrência das armas nucleares, que dificilmente deixariam de ser
usadas caso isso acontecesse. Felizmente... não aconteceu.
O romance de Orwell é metafórico
e comporta várias interpretações. O enfoque analisado por muito tempo foi o
ideológico, com esquerda e direita atribuindo, uma à outra, a superditadura
mundial tratada na referida obra, a do “Big Brother”. Hoje, o que está em
questão é nossa perda de privacidade por causa da parafernália tecnológica que
se incorporou à nossa rotina cotidiana, tornando nossa vida não algo que diga
respeito, apenas, a nós e a nosso núcleo familiar, mas pública e escancarada. O
que me proponho a fazer é “revisitar” Orwell. É refletir, com vocês, sobre
alguns aspectos suscitados, direta ou indiretamente, por este polêmico romance,
que considero literariamente pobre, mas que é riquíssimo em temas que merecem
madura consideração
Aviso, de antemão, que
não farei nenhuma sinopse do livro. Aliás, não faço de nenhum dos tantos que
trago à baila em meus textos analíticos. Meu propósito não é o de resumir
nenhuma obra, mas o de trazer à baila o que cada uma delas sugere nas
entrelinhas. Escrevi, e publiquei na época, extenso ensaio, com o título do
romance, “1984”, que publiquei em 20 de novembro de 1983 no jornal “Correio
Popular” de Campinas, onde era editor. Proponho-me a reproduzir vários trechos
do referido (e extenso) texto, mas com as devidas atualizações, ditadas por fatos
supervenientes, ocorridos nos últimos trinta anos.
Antes de entrar
diretamente no assunto, peço licença, paciente leitor, para refrescar-lhe a
memória com alguns dados biográficos, hiper resumidos, do autor desse romance.
George Orwell é o pseudônimo adotado pelo escritor e ativista político de
esquerda, Eric Arthur Blair. Ele não nasceu na Inglaterra, como muitos podem
pensar. É natural de Bengala, na Índia, que na ocasião do seu nascimento (1903)
era uma das tantas colônias da Grã-Bretanha espalhadas pelo mundo. Seu pai era
funcionário do governo colonial britânico e a mãe, cidadã francesa. Quando
tinha somente oito anos de idade, a família mudou-se para a metrópole, para a
Inglaterra e o garoto foi imediatamente mandado para um internato.
Em 1917, aos catorze
anos, George (na verdade, Eric, como queiram) ingressou no Etton College, uma
das mais tradicionais escolas inglesas, onde teve como professor o notável
escritor Aldous Huxley, que o teria influenciado decisivamente. Formou-se em
1921 e, um ano depois, recusou uma bolsa de estudos para cursar a universidade.
Em vez disso, decidiu voltar à Índia, após ingressar na polícia. Começaria, aí,
uma vida de aventuras, que caracterizaria sua trajetória por anos e mais anos.
Eric tornou-se, ao retornar à Inglaterra, em 1928, literalmente um vagabundo:
sem emprego fixo, sem objetivos e sem posição social. Chegou, até mesmo, a
mendigar. Por dois longos anos, até meados de 1930, perambulou, sem rumo e sem
destino, entre Londres e Paris, envolvendo-se em encrencas de toda sorte.
Resolveu, porém, narrar
em livro suas aventuras (ou desventuras?). Escreveu, e publicou, “Na pior,
entre Paris e Londres”, que se constituiria em sua primeira obra literária que,
ademais, não fez\ grande sucesso. Todavia pelo menos inseriu-o no mundo
literário. O ano era 1933. A Europa vivia, então, um período caracterizado pela
boêmia, que ficou conhecido como “Belle Époque”. Ou as classes privilegiadas
viviam-na. Festas e mais festas sucediam-se por toda a parte, em que a bebida
rolava farta e solta e a juventude européia agia como se o mundo fosse uma
imensa boate, cujo objetivo fosse exclusivamente se divertir, sem atentar para
o amanhã. Enquanto isso, nos bastidores, as engrenagens políticas giravam e
giravam e criavam condições propícias para a eclosão da mais terrível e
homicida das guerras que a humanidade já viu.
George Orwell (é assim
que irei tratá-lo na sequência destas considerações), era socialista convicto.
Quando, em 1936, a ascensão do general Francisco Franco, na Espanha, levou
aquele país à sangrenta guerra civil, o jovem aventureiro não teve dúvidas:
alistou-se na Brigada Internacional, em defesa do presidente espanhol eleito,
ameaçado pelas forças fascistas de extrema-direita, que contavam com os apoios
(não somente político, mas,sobretudo, militar) do cada vez mais poderoso líder
nazista Adolf Hitler e do italiano Benito Mussolini. Entre os brigadistas havia
muitos jovens intelectuais, idealistas, mas (convenhamos) não muito (ou nada)
ajuizados. Um deles era o norte-americano Ernest Hemmingway, que se inspirou
nessa empreitada para escrever seu notável romance “Por quem os sinos dobram”.
George Orwell também
escreveu um livro a propósito: “Lutando
na Espanha”, publicado em 1938, em que narra suas experiências como combatente
da Brigada Internacional. Durante a Segunda Guerra Mundial, atuou como
correspondente da rede BBC. Seu livro mais popular, no entanto, não é (ainda
hoje), “1984”, mas “A revolução dos bichos”, que publicou em 1945. Li-o, reli-o
e, confesso, não gostei. Mas... Cito, mais a título de curiosidade, outros três
dos seus livros: “Dias na Birmânia” (1934), “O caminho de Wigan (1937) e “Por
que escrevo” (1946). Porém, o que nos interessa é o romance “1984”, sobre o
qual escreverei na sequência. Para não deixar este resumo biográfico
incompleto, contudo, informo que George Orwell (na verdade Eric Arthur Blair)
morreu em 1950, na Inglaterra, vítima de tuberculose.
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