Wednesday, December 17, 2014

Extremos que se tocam

Pedro J. Bondaczuk

A história é narrada na terceira pessoa. Passa-se no futuro, mais especificamente no ano de 1984.  O cenário é a Pista de Pouso Número Um. Ela integra o megabloco da Oceania. Não se trata, aqui, do continente com esse nome. É a denominação dada à reunião de países de todos os oceanos do mundo, uma espécie de megaconfederação, que abrange a maior parte, quase a totalidade do Planeta. Poderia ser uma situação ideal, ou seja, uma sociedade sem fronteiras e sem as atuais barreiras de língua, raça, religião etc. e de todas as demais coisas que dividem, há milênios, a humanidade. Poderia... caso fosse uma democracia. Mas não era. Tratava-se de uma ditadura como nunca vista, que controlava todos e tudo nas pessoas, até, e principalmente, as idéias que tinham.

Este é o panorama em que se desenvolve o enredo de um dos romances mais polêmicos do século XX que, mesmo escrito ao final da Segunda Guerra Mundial, e publicado em 1949, volta e meia vem de novo à baila, gerando análises e debates de toda a sorte. Refiro-me ao livro “1984”, do escritor inglês, George Orwell. Seu tema principal não é sequer o político, embora assim pareça, por tratar da pior das ditaduras que se possa imaginar. Essa, aliás, é tão absoluta que o que está em questão no livro é a transformação da própria realidade. É o que o partido que está no poder, o IngSoc (único admissível, claro, como ocorre em regimes totalitários) se encarrega de fazer com diligência e eficiência.

Para não correr o mais remoto risco de sofrer ínfima oposição, o todopoderoso e onipresente líder, identificado como “Grande Irmão” (Big Brother), controla, através de um sistema de monitoramento do qual nada escapa – e não apenas o comportamento dos robotizados cidadãos, mas até, e principalmente, seus pensamentos – o IngSoc criou uma espécie de novo idioma, chamado, eufemisticamente, de “novilíngua”.

O maior delito que alguém poderia cometer em Oceania era o de pensar de forma mesmo que remotamente diferente do poderoso ditador. Tinha, até, um nome próprio: “crimidéia”. Para essa infração, não havia recurso e muito menos perdão. O infrator era perseguido pela Polícia do Pensamento, capturado e... executado, sem nenhum julgamento, mesmo que simulado ou sumário. Era, simplesmente, vaporizado. Ou seja, fisicamente destruído. O romance de Orwell propõe-se a narrar a história de Winston Smith, funcionário do Ministério da Verdade, cuja principal função era a de fazer exatamente o contrário do que o nome da pasta sugeria. Ou seja, distorcer, mentir, falsear, em suma, apresentar a “realidade” não como era, mas como o Grande Irmão queria que fosse.

O foco dos debates em torno desse polêmico romance, pelo menos os que ocorreram às vésperas de 1984, ano escolhido pelo autor para o surgimento dessa inflexível e absolutíssima ditadura, não era sobre se tal tirania seria possível ou impossível, provável ou improvável. Era o de (caso esta viesse a ser implantada, algum dia) se ela seria de esquerda ou de direita. Adeptos das duas correntes ideológicas se acusavam mutuamente, uma atribuindo à outra os instintos do absurdo “Big Brother”. Da minha parte entendo que, caso uma tirania, minimamente parecida com a descrita por Orwell, viesse a ser implantada (Deus que nos livre disso!), ela poderia ser tanto de uma facção ideológica, quanto da outra, posto que por métodos diversos de tomada e conservação do poder. Afinal, os extremos sempre se tocam. E esquerda e direita são o verso e o reverso de uma mesma moeda.

O polêmico (e saudoso) jornalista Paulo Francis tratou, na coluna que então assinava no jornal “Folha de S. Paulo” – mais especificamente, na publicada em 29 de janeiro de 1983 – dos debates que então se verificavam na imprensa norte-americana em torno do romance “1984”. Destacou, entre outras coisas, que tanto o “Village Voice” (porta-voz da esquerda nos EUA), quanto o “Harper’s” (de extrema direita) reivindicavam, para si, o pensamento político de Orwell, auto-elegendo-se como seus “legítimos herdeiros”. Ora, ora, ora...

Na minha visão pessoal (e na da maioria dos mais reputados críticos literários), “1984” é obra menor, tanto na relativamente escassa bibliografia do autor, quanto, e principalmente, na moderna literatura inglesa. Lido com a devida atenção, com foco não tanto no enredo, mas nos aspectos técnicos, o livro contém uma série de falhas e omissões. Parece ter sido escrito às pressas, sem a devida revisão final que, se feita com cuidado e critério, as sanaria e suprimiria. O romance, claro, tem também muitas virtudes. Uma, por exemplo, é a apresentação do “newspeak”, ou seja, a linguagem, cheia de dubiedades, eufemismos e falsidades, do “establishment” totalitário.

Sua retórica, fartamente conhecida pelos povos que viveram ou que ainda vivem sob ditaduras, caracteriza-se pela justificação de todos os atos dos detentores do poder absoluto, por mais execráveis, covardes e desumanos que sejam, com a utilização de uma linguagem que enfatiza, sobretudo, uma pretensa “salvação nacional”. E esse é um recurso utilizado por tiranias tanto de esquerda, quanto de direita que, ao fim e ao cabo, reitero, sempre se tocam, variando, quando muito, nos métodos para a tomada e conservação do poder. Voltarei, certamente, ao tema.


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