Extremos que se tocam
Pedro
J. Bondaczuk
A história é narrada na
terceira pessoa. Passa-se no futuro, mais especificamente no ano de 1984. O cenário é a Pista de Pouso Número Um. Ela
integra o megabloco da Oceania. Não se trata, aqui, do continente com esse
nome. É a denominação dada à reunião de países de todos os oceanos do mundo,
uma espécie de megaconfederação, que abrange a maior parte, quase a totalidade
do Planeta. Poderia ser uma situação ideal, ou seja, uma sociedade sem
fronteiras e sem as atuais barreiras de língua, raça, religião etc. e de todas
as demais coisas que dividem, há milênios, a humanidade. Poderia... caso fosse
uma democracia. Mas não era. Tratava-se de uma ditadura como nunca vista, que
controlava todos e tudo nas pessoas, até, e principalmente, as idéias que
tinham.
Este é o panorama em
que se desenvolve o enredo de um dos romances mais polêmicos do século XX que,
mesmo escrito ao final da Segunda Guerra Mundial, e publicado em 1949, volta e
meia vem de novo à baila, gerando análises e debates de toda a sorte. Refiro-me
ao livro “1984”, do escritor inglês, George Orwell. Seu tema principal não é
sequer o político, embora assim pareça, por tratar da pior das ditaduras que se
possa imaginar. Essa, aliás, é tão absoluta que o que está em questão no livro
é a transformação da própria realidade. É o que o partido que está no poder, o
IngSoc (único admissível, claro, como ocorre em regimes totalitários) se
encarrega de fazer com diligência e eficiência.
Para não correr o mais
remoto risco de sofrer ínfima oposição, o todopoderoso e onipresente líder,
identificado como “Grande Irmão” (Big Brother), controla, através de um sistema
de monitoramento do qual nada escapa – e não apenas o comportamento dos
robotizados cidadãos, mas até, e principalmente, seus pensamentos – o IngSoc
criou uma espécie de novo idioma, chamado, eufemisticamente, de “novilíngua”.
O maior delito que
alguém poderia cometer em Oceania era o de pensar de forma mesmo que
remotamente diferente do poderoso ditador. Tinha, até, um nome próprio:
“crimidéia”. Para essa infração, não havia recurso e muito menos perdão. O
infrator era perseguido pela Polícia do Pensamento, capturado e... executado,
sem nenhum julgamento, mesmo que simulado ou sumário. Era, simplesmente,
vaporizado. Ou seja, fisicamente destruído. O romance de Orwell propõe-se a
narrar a história de Winston Smith, funcionário do Ministério da Verdade, cuja
principal função era a de fazer exatamente o contrário do que o nome da pasta
sugeria. Ou seja, distorcer, mentir, falsear, em suma, apresentar a “realidade”
não como era, mas como o Grande Irmão queria que fosse.
O foco dos debates em
torno desse polêmico romance, pelo menos os que ocorreram às vésperas de 1984,
ano escolhido pelo autor para o surgimento dessa inflexível e absolutíssima
ditadura, não era sobre se tal tirania seria possível ou impossível, provável
ou improvável. Era o de (caso esta viesse a ser implantada, algum dia) se ela
seria de esquerda ou de direita. Adeptos das duas correntes ideológicas se
acusavam mutuamente, uma atribuindo à outra os instintos do absurdo “Big
Brother”. Da minha parte entendo que, caso uma tirania, minimamente parecida
com a descrita por Orwell, viesse a ser implantada (Deus que nos livre disso!),
ela poderia ser tanto de uma facção ideológica, quanto da outra, posto que por
métodos diversos de tomada e conservação do poder. Afinal, os extremos sempre
se tocam. E esquerda e direita são o verso e o reverso de uma mesma moeda.
O polêmico (e saudoso)
jornalista Paulo Francis tratou, na coluna que então assinava no jornal “Folha
de S. Paulo” – mais especificamente, na publicada em 29 de janeiro de 1983 –
dos debates que então se verificavam na imprensa norte-americana em torno do
romance “1984”. Destacou, entre outras coisas, que tanto o “Village Voice”
(porta-voz da esquerda nos EUA), quanto o “Harper’s” (de extrema direita)
reivindicavam, para si, o pensamento político de Orwell, auto-elegendo-se como
seus “legítimos herdeiros”. Ora, ora, ora...
Na minha visão pessoal
(e na da maioria dos mais reputados críticos literários), “1984” é obra menor,
tanto na relativamente escassa bibliografia do autor, quanto, e principalmente,
na moderna literatura inglesa. Lido com a devida atenção, com foco não tanto no
enredo, mas nos aspectos técnicos, o livro contém uma série de falhas e
omissões. Parece ter sido escrito às pressas, sem a devida revisão final que,
se feita com cuidado e critério, as sanaria e suprimiria. O romance, claro, tem
também muitas virtudes. Uma, por exemplo, é a apresentação do “newspeak”, ou
seja, a linguagem, cheia de dubiedades, eufemismos e falsidades, do
“establishment” totalitário.
Sua retórica,
fartamente conhecida pelos povos que viveram ou que ainda vivem sob ditaduras,
caracteriza-se pela justificação de todos os atos dos detentores do poder
absoluto, por mais execráveis, covardes e desumanos que sejam, com a utilização
de uma linguagem que enfatiza, sobretudo, uma pretensa “salvação nacional”. E
esse é um recurso utilizado por tiranias tanto de esquerda, quanto de direita
que, ao fim e ao cabo, reitero, sempre se tocam, variando, quando muito, nos
métodos para a tomada e conservação do poder. Voltarei, certamente, ao tema.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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